Opinião

Médicos: o acordo dos desacordos

Médicos: o acordo dos desacordos

Gonçalo Melo

Médico de família com qualificações em Gestão

Governo responsabiliza os médicos pelo volume de episódios de urgência quando isso é da sua exclusiva responsabilidade. Mantém as urgências hospitalares abertas sem quaisquer critérios de referenciação e controlo e ainda pondera alargar o horário de funcionamento dos centros de saúde quando não tem sequer médicos de família para atribuir a um quinto da população, número que se agravará certamente se esta medida for avante

Do acordo de princípios divulgado pelo Ministério da Saúde aos Sindicatos Médicos como preâmbulo da reunião a decorrer no domingo 29 de outubro para a suposta finalização das negociações em curso, constavam a progressiva diminuição de 18 para 12 horas no trabalho em serviço de urgência, indexada à diminuição dos episódios de urgência e, consequentemente, da necessidade de realização de trabalho extraordinário, assim como o alargamento do horário de funcionamento dos centros de saúde, criando assim condições para atender em proximidade as pessoas em situação de doença aguda não urgente, reduzindo a necessidade de recurso aos serviços de urgência.

Uma única proposta de acordo que faz o pleno da incoerência governativa ao responsabilizar os médicos pelo volume de episódios de urgência quando o mesmo é da exclusiva responsabilidade do Governo ao manter as urgências hospitalares abertas sem quaisquer critérios de referenciação e controle e ao ponderar o alargamento do horário de funcionamento dos centros de saúde quando não tem sequer médicos de família para atribuir a um quinto da população, número que se agravará certamente se esta medida for avante.

Intui-se assim desta proposta de acordo que não só não existe uma ideia estrutural de fundo para o SNS como o que parece transparecer é que o objetivo primordial, quiçá único, é o de querer evitar o recurso à ida aos serviços de urgência hospitalar, custe o que custar.

Mas não havendo médicos de família, das duas uma: ou se oferece gato por lebre à população com médicos indiferenciados nos centros de saúde, ou se alocam as horas dos médicos de família existentes à abordagem da doença aguda em detrimento da prevenção em saúde e da vigilância dos grupos vulneráveis e de risco. Em qualquer dos casos, está demonstrado em vários estudos, que o recurso às urgências aumenta. Provoca-se, portanto, o que se pretende evitar.

Se o problema do Governo é o controle do volume de recorrência aos serviços de urgência hospitalar e da despesa estrutural, tem várias opções. A mais rápida seria a abertura exclusiva dos serviços de urgência hospitalar a doentes referenciados e a contratualização com os hospitais privados para abordagem do utente em situação de doença aguda não urgente durante os períodos de encerramento dos centros de saúde (dias úteis das 20h às 8h e fins-de-semana e feriados), com a possibilidade de execução de meios complementares de diagnóstico e de emissão de certificados de incapacidade temporária assim como de referenciação para o Serviço de Urgência do Hospital Público em caso de superveniente gravidade que o justificasse. Para evitar abusos, cada pessoa teria um plafond anual, após o qual, progressivamente, veria reduzido o valor das deduções à coleta ou os benefícios fiscais em sede de IRS.

Reduziam-se assim: a necessidade de carga de trabalho e consequente desgaste e insatisfação imposta aos médicos de família que poderiam assim dedicar-se em pleno às famílias que têm a seu cargo; a necessidade de número de médicos a trabalhar em serviços de urgência hospitalar que ademais tenderiam à sua diferenciação graças à triagem que complexificaria os casos que lhes chegassem às mãos; insatisfação da população que teria mais alternativas e com condições de físicas porventura menos desgastadas; a despesa estrutural do Estado. E fomentava-se o tecido económico.

Bastaria preferir a razão à irrazoabilidade. O pragmatismo à ideologia. E ter vontade.

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