O mundo nunca foi um lugar pacífico ou tranquilo. Nem as últimas décadas foram um momento de paz generalizada. Mas, para quem vive na Europa, a Guerra da Ucrânia, a tensão crescente com a China e, agora, o regresso do conflito no médio Oriente, com o ataque do Hamas a Israel, trazem uma memória de guerra, incerteza e insegurança de que estávamos esquecidos. E que pode trazer de regresso a valorização dos grandes consensos.
As últimas décadas não foram isentas de razões para preocupação entre os ocidentais, em geral, e os europeus em particular. Depois do 11 de Setembro, sentimo-nos vulneráveis e inseguros dentro das nossas fronteiras. A crise económica, com consequências que se espalharam de 2008 até 2015 ou mais, fez duvidar do modelo económico capitalista, das virtudes da economia de mercado e da bondade das intervenções das instituições europeias e internacionais. A globalização, inicialmente olhada como abertura a um mundo potencialmente pacífico e eventualmente mais democrático, foi sendo vista como causa da perda de empregos e valor industrial e económico do ocidente e, por esse efeito, como responsável por parte da polarização e radicalização de políticos e eleitores (por esta ou outra ordem). As alterações climáticas reforçaram a crítica interna ao modelo económico e criaram uma ansiedade que leva muitos a crer que a extinção é próxima, inevitável e por culpa própria.
Todas estas ameaças tinham a característica de serem apresentadas como o resultado culposo do Ocidente e da Europa e explorado internamente para criticar o modelo e os pressupostos das democracias liberais ocidentais. Fosse por deixar entrar imigrantes, por ignorar as consequências climáticas do nosso modelo, ou por alimentar a ganância desregulada dos mercados. E a crítica interna foi reforçada com a convicção de que no Ocidente, e no resto do mundo por culpa da História do Ocidente, as condições sociais e os direitos de largas categorias de pessoas e grupos eram desconsiderados ou atacados.
É evidente que tudo isto tem acontecido ao mesmo tempo que há guerras localizadas ou em que o Ocidente, em especial a América, participa. Mas mesmo quando foram, e foram muito, criticadas, nunca essas guerras pareceram pôr em risco os ocidentais em geral, e os europeus em particular. Era exactamente por serem percebidas como guerras nossas, e não contra nós que eram tão criticadas internamente sem serem percebidas como uma ameaça interna.
Nada disto acabou. O clima não se recompôs miraculosamente; o terrorismo tem sido menos consequente, mas não desapareceu; as consequências económicas associadas à globalização não se extinguiram; a história colonial não desapareceu, nem as guerras identitárias. Mas o que assusta e preocupa os europeus, provavelmente mais que outros ocidentais, é muito mais próximo e externo. A guerra da Rússia contra a Ucrânia, o efeito do crescimento global da China e, agora, o risco de regresso a um tempo de guerra no médio Oriente.
Nada disto é completamente diferente ou novo. Mas pode reorganizar as prioridades e preocupações dos ocidentais, em geral, e dos europeus muito em particular.
De um momento para o outro, o que mais aflige os europeus, no imediato e numa perspectiva de longo prazo, não é visto como sendo trazido por culpa própria. Não é o seu modelo económico, não são as suas políticas sociais, não são os direitos (em falta ou excesso, conforme a orientação política) das minorias. É a guerra provocada pela Rússia, é a competição da China e, agora, uma possível guerra que começa com um ataque terrorista evidentemente obsceno.
Nada disto nos faz mais tranquilos ou seguros. Pelo contrário. Nem isenta de responsabilidades o Ocidente ou de acusações dos Ocidentais aos seus próprios regimes. Mas pode alterar a perspectiva sobre como se deve responder. E como nos devemos organizar
Em todos estes temas há um traço comum: há consenso entre os chamados moderados (o que habitualmente eram os partidos do grande centro e os movimentos sociais que lhes estão próximos) e um afastamento dos outros.
A Guerra da Ucrânia expulsou uns do consenso (à esquerda, mas também à direita). O ataque do Hamas mostrou outros desacordos, sobretudo à esquerda mas, de novo, também à direita. A exposição da China, do que é, do que pretende e de como ameaça a democracia liberal, irá expor outros, de novo à direita e à esquerda. Na Europa, nestes temas regressaremos, muito provavelmente, aos consensos ao grande centro. Que, em Bruxelas, costumava ir dos verdes aos conservadores liberais. A única eventual boa notícia.