Opinião

A (des)construção da fome na cimeira da CPLP

A (des)construção da fome na cimeira da CPLP

Francisco Bendrau Sarmento

Mestre em Sociologia Agrícola, ex-chefe do escritório de ligação da FAO em Lisboa

A XIV Conferência de Chefes de Estado e de Governo da CPLP que está a realizar-se em São Tomé e Príncipe decorre num momento em que novos dados indicam que muitos milhões de pessoas na Comunidade não conseguem ter acesso a uma alimentação saudável e adequada

O mundo alimentar está a avançar mais rapidamente do que as instituições nacionais e supranacionais que o regulam e a pandemia só acelerou esse processo. Refira-se, por exemplo, que com o advento das tecnologias de automação agrícola digital, a mudança climática e a urbanização, aumentam, também, as preocupações com as crescentes desigualdades sociais. Daqui resultam os maiores desafios para os Estados nacionais na conceção e a implementação de novas políticas e programas para a promoção da Segurança Alimentar e Nutricional no contexto da atual transformação do sistema alimentar.

Desafios bem ilustrados nos dados do recente relatório “O Estado da segurança alimentar e nutricional no mundo” (SOFI, pela sigla em inglês), uma produção conjunta da FAO, FIDA, PMA, OMS e UNICEF, que traz noticias preocupantes para os países da Comunidade de Língua Portuguesa (CPLP) cujos presidentes se reúnem em São Tomé e Príncipe no dia 27 de agosto.

O estudo realça que quase 3,2 mil milhões de pessoas em todo o mundo não podiam assegurar uma dieta saudável em 2020. Função da acentuada urbanização em Africa, esta situação, em muitos países africanos, é particularmente mais grave nas áreas periurbanas (1,5 vezes maior do que nos centros urbanos).

Com as políticas alimentares atuais continuamos, portanto, a não conseguir reduzir o êxodo rural – urbano e a não possuir instrumentos para lidar com a crescente insegurança alimentar e nutricional nas áreas periurbanas na maioria dos países da CPLP. Para superar esse desafio e aproveitar as oportunidades que a urbanização cria, as nossas ações, intervenções políticas e investimentos terão de ter em conta que a urbanização afeta o acesso a dietas saudáveis a preços acessíveis e, consequentemente, a segurança alimentar e a nutrição.

O mesmo estudo mostra que em 2021, a percentagem de pessoas dos países da CPLP que não possuíam um acesso a uma dieta saudável [1] situava-se em 92,5% em Moçambique, 88,1% em Angola, 84,6% na Guiné-Bissau, 78,2% em São Tomé e Príncipe, 41,2% em Cabo Verde, 22,4% no Brasil e 1,2% em Portugal [2]. Ou seja, cerca de 110 milhões de pessoas na CPLP não conseguem ter acesso a uma alimentação adequada.

O tema da Alimentação tem estado na agenda das Cimeiras da CPLP na última década. Contudo, a arquitetura de governança exemplar erigida pela maioria dos Estados – Membro, no âmbito da Estratégia de Segurança Alimentar e Nutricional da CPLP, não tem tido o apoio político e os recursos necessários ao seu pleno funcionamento. Esta cimeira é uma oportunidade para mudar essa situação.

[1] Uma dieta saudável é composta por uma variedade de alimentos nutritivos e seguros que fornecem energia e nutrientes nas quantidades necessárias para uma vida saudável e ativa. O custo de uma dieta saudável é definido como o custo dos alimentos menos dispendiosos disponíveis localmente dentro de um balanço energético de 2 330 kcal/dia. Uma dieta saudável é considerada inacessível quando o seu custo excede 52% do rendimento do individuo.

[2] Não existem dados para Guiné Equatorial e Timor-Leste.

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