Opinião

A neurodiversidade como dom e a fita dos girassóis

Maria d’Oliveira Martins e Tiago Souza d’Alte *

A neurodiversidade faz-nos pensar que as diferentes formas de funcionamento de cada um são um dom, porque nos apresentam uma panóplia de características atípicas que enriquecem a visão que temos do ser humano

Sermos pais de alguém neurodivergente deu-nos oportunidade de compreender muitas coisas e tempo de ajustar o nosso olhar em relação às suas particularidades e à própria ideia de neurodiversidade (conceito que surgiu em 1998 pela mão de Judy Singer). A ideia de neurodiversidade está na base de um movimento de reclamação de mais direitos para aqueles cujo cérebro não funciona dentro do padrão considerado típico – “típico”, em detrimento do conceito de “normal”, que em si encerra a ideia errada de que o cérebro humano tem o dever de se comportar de uma determinada maneira, como se existisse uma “norma”. Dentro da neurodiversidade insere-se, nomeadamente, a perturbação do espetro do autismo, o transtorno de défice de atenção com hiperatividade (TDAH), a dislexia, com dispraxia, a deficiência intelectual, a síndrome de Tourette e os transtornos obsessivos-compulsivos.

Sermos pais de alguém neurodivergente ensinou-nos, antes de mais, que uma pessoa é muito mais do que as suas dificuldades e que devemos gostar das pessoas por aquilo que elas verdadeiramente são e não por elas serem aquilo que esperamos delas. É esse o fundamento do abandono do conceito de “normal”, porque ele traduz mais a nossa expectativa subjetiva acerca do outro, do que aquilo que o outro objetivamente é.

Fez-nos perceber também que não somos todos iguais e devemos ser mais tolerantes (e menos julgadores) perante a diferença. Aliás, a descoberta da ideia de neurodiversidade veio revelar que, na verdade, a atipicidade neurológica é afinal mais comum no ser humano do que julgávamos – há menos pessoas “típicas” do que supomos. Como pais, foi importante perceber que as crianças se podem desenvolver fora do padrão típico, ao seu próprio ritmo.

Fez-nos também tomar consciência de que nem todos reagimos da mesma forma aos estímulos do dia a dia.

As dificuldades de quem é neurodivergente residem sobretudo na relação com as pessoas fora do seu entorno. Por não saberem, nem terem como reconhecer os traços da sua condição – porque não são evidentes aos olhos dos outros –, muitos acabarão inevitavelmente por ser injustos. Num julgamento apressado e à luz de um padrão de normalidade, uma criança poderá facilmente ouvir expressões como: “Ela é mimada!”; “Ela é malcriada!”. Poderá confrontar-se com a impaciência das pessoas: “Porque é que ela não cumprimenta?”; “Por que razão não olha nos olhos?”; “Porque é que ela demora a responder?”. Poderá ainda ser confrontada com várias perguntas, se revelar a sua condição, sem mais explicações, pelo simples facto de algumas condições não estarem ligadas a uma aparência física ou características que sejam sequer facilmente padronizáveis.

Por isso, a nossa condição de pais de uma criança neurodivergente faz-nos querer lutar por um mundo com menos discriminação e mais inclusão. A impaciência e a intolerância a que as pessoas neurodivergentes estão expostas facilmente se convertem em obstáculos que as impedem de realizar o seu potencial, de chegar tão longe quanto queiram e possam na vida.

A este propósito, surgiu recentemente a notícia da aprovação no Brasil de uma lei (a Lei n.º 14624, de 17 de julho) instituindo a fita dos girassóis como símbolo das deficiências impercetíveis.

Sabemos bem que não é uma medida consensual, sobretudo no que toca às condições abrangidas pela neurodiversidade, na medida em que trata como deficiência algumas condições que devem ser reabilitadas como diferenças cognitivas e retiradas do espetro da patologia. No entanto, pensamos que enquanto instrumento de utilização facultativa, poderia ser tomada como exemplo para o nosso país. Poderia até ser útil para outras pessoas – mesmo que não neurodivergentes – com condições de difícil perceção a olho nu.

A fita dos girassóis surgiu, pela primeira vez, em 2016, no aeroporto de Gatwick de Londres para maior apoio a pessoas com deficiências ocultas. O uso que agora se institui no Brasil não visa condicionar os direitos da pessoa com deficiência, nem substitui a apresentação de documento comprovativo de deficiência quando necessária. É apenas uma medida que pretende favorecer a inclusão e exigir maior compreensão no atendimento.

Não obstante as questões que possa suscitar, a proposta em Portugal de uma medida como esta poderia dar oportunidade não só para abrir um debate mais amplo sobre o tratamento adequado a dar a estas condições ocultas, mas também para ser pretexto de uma campanha de informação sobre a própria neurodiversidade.

No mundo ideal, a inclusão de todas as pessoas deveria ser natural, sem necessidade de marcação ou estigmatização de ninguém. Mas, enquanto esse tempo não chega, parece-nos que esta medida poderia ser tomada – ainda que como medida temporária – como uma boa oportunidade para acelerar o processo de inclusão que as pessoas com condições ocultas merecem. De forma que possam, desde já (se assim o desejassem, pois o uso da fita apenas pode ser concebido como facultativo), apenas pelo reconhecimento da fita e sem mais perguntas, beneficiar de mais empatia e menos julgamento, de mais compreensão e paciência por parte dos outros, no espaço público e fora do contexto familiar.

A fita dos girassóis poderá permitir dar tempo ao olhar do outro para se ajustar a características diferentes, pondo em evidência de que se está perante alguém com uma condição oculta que não consegue simplesmente dominar e pela qual não é responsável. Talvez seguindo os passos do que foi feito no Brasil, se dê a todos a oportunidade e a sensibilidade de olharem para as diferenças como dons.

* Maria d’Oliveira Martins é professora de Direito Constitucional e Finanças Públicas da Universidade Católica Portuguesa; Tiago Souza d’Alte é advogado

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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