Opinião

Ainda não há chinesistas

Ainda não há chinesistas

Henrique Burnay

Consultor em Assuntos Europeus

O entusiasmo revolucionário com Cuba é inconsequente e irrelevante. Mas sinaliza outro problema. Haverá um dia em que alguém será a favor do modelo chinês. Os que não gostam do Ocidente. Nem da Liberdade. Basta começar a invasão de Taiwan

Cuba é obviamente uma ditadura e uma história económica de insucesso. Alguém que pudesse escolher livremente onde e como viver, dificilmente escolheria ir viver para Cuba sob o regime comunista. Mas há quem jure o contrário, por razões óbvias: fervor ideológico.

A visita a Portugal do presidente de Cuba não provocou os arrebatamentos românticos que Fidel Castro e Che Guevara geravam nos corações revolucionários, mas recordou uma discussão que parecia ter acabado.

Nos tempos da Guerra Fria, os defensores do Ocidente tinham muito por onde escolher para alegar as virtudes do seu modelo. O sistema social nórdico, o dinamismo económico americano, a proteção alemã, os valores democráticos britânicos. A lista não era interminável nem incriticável, mas era longa.

Do outro lado, os defensores do comunismo não tinham regimes democráticos para exibir, nem grandes performances económicas para mostrar (como, de resto, se viu no fim daquela História), mas invocavam outros argumentos. A cultura dos povos de Leste, as medalhas olímpicas dos campeões russos, a saúde gratuita para todos na Alemanha impropriamente chamada Democrática. Laika, a primeira cadela no espaço. E, claro, a resistência moral do povo cubano. Para os comunistas, os seus amigos não eram democracias formais, um defeito burguês, mas eram democracias substantivas, com gente cheia de saúde, educação, cultura e ginástica.

Em contrapartida, nos pontos de conflito, alguns adeptos do Ocidente, em vez de se limitarem a preferir um mal eventualmente menor (ou mais próximo), invocavam as proezas económicas de Pinochet, ou as supostas melhores condições de vida dos negros da África do Sul do apartheid por comparação com a miséria e a fome dos regimes comunistas em África. Era, no essencial, um exercício de defesa ideológica, sem grande respeito pelo sofrimento de cada povo.

Os anos seguintes à queda do Muro, à falta de modelo alternativo e de competição ideológica, convenceram a opinião pública de que os países valiam mais por aquilo que eram do que pelo seu alinhamento com os nossos interesses e a nossa ideologia. A Arábia Saudita podia ter muito petróleo que nos faz falta, mas a ninguém ocorreria dizer que é um regime melhor do que outra coisa qualquer. Aquilo é mau por direito próprio. Assim como Angola pode ser um “país amigo” ou “irmão” e insuscetível de críticas públicas por razões de interesse mas, de novo, a ninguém ocorre defender as virtudes do regime angolano. É o que é. E, esperava-se, Cuba também. Uma ilha de pobreza e falta de democracia de onde muitos tentam fugir e para onde ninguém quer ir. E, não, não é só por causa do bloqueio (um erro americano). Não é o bloqueio que impede a democracia nem foi o bloqueio que levou à perseguição a homossexuais pelo regime (coisa admitida por Fidel).

A guerra da Ucrânia veio restaurar estas divergências. Para espanto de quem não se lembrava do mundo antes da queda do Muro de Berlim, o Partido Comunista e vários esquerdistas mais antigos e mais profundos escolheram rapidamente o lado. Se a Ucrânia tinha o apoio dos Estados Unidos da América, era evidente onde é que eles estariam: do outro lado.

A passagem por Portugal do presidente de Cuba restaurou este tipo de discussões. Por alguns dias houve quem exibisse os méritos cubanos. Há muita saúde e grande esperança média de vida (é verdade). As pessoas vivem felizes como, de resto, provam as fotografias de quem lá vai em turismo. E a culpa de não ser ainda melhor é do bloqueio americano. E, claro, não é uma democracia formal, mas é substantiva, que é o que importa.

O entusiasmo revolucionário com Cuba é inconsequente e irrelevante. Uma doença juvenil que dá sobretudo em gente velha. Mas sinaliza outro problema: a China.

Ao contrário do que aconteceu na Guerra Fria, na crescente competição com a China ainda não há um alinhamento ideológico internacional. O modelo político chinês ainda não tem muitos adeptos assumidos por cá. Ainda não há intelectuais disponíveis para dizer que os uigures são terroristas e que a maioria da população chinesa é mais feliz porque tem uma alimentação mais saudável do que os obesos americanos. Lá chegaremos.

Haverá um dia em que alguém será a favor do modelo chinês. Os do costume, claro. E, olhando para o que se está a passar com a Ucrânia, a direita radical antiocidental, também. Os críticos do mundo global, cosmopolita, democrático e liberal um dia explicarão que o sucesso da China se deve ao papel do Estado, à Ordem e à rejeição da decadência moral. Um dia haverá defensores assumidos da China como havia comunistas. Basta a China invadir Taiwan.

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