Opinião

As Causas. Goste-se ou não, é assim

Quando um partido detém a maioria da Assembleia da República, como é o caso, há como regra uma inversão da lógica do sistema constitucional: o Governo passa a controlar a Assembleia e não o contrário

Há uma habitual fonte de confusão para quem tem a paciência suficiente para dar atenção a comentadores.

Falo de se julgar que as conclusões que se retiram de críticas feitas a ações ou omissões de atores políticos e sociais significam uma valoração ética ou intelectual, negativa ou positiva.

Não digo que isso não possa ocorrer, mas pelo menos no meu caso não costuma ser a regra. É que acontece com os temas de hoje.

UMA MORTE E UM CAOS

Um disparo não justificado de um polícia, numa operação stop, matou um jovem magrebino de 17 anos que conduzia sem ter carta de condução um veículo de alta cilindrada.

Este acontecimento provocou uma onda de violência que durante uma semana incendiou 12.000 caixotes de lixo e 6.000 viaturas, vandalizou mais de 1.000 escolas, bibliotecas, edifícios municipais, afetou mais de 250 esquadras e edifícios policiais, saqueou centenas de lojas e centros comerciais, incluiu a tentativa de homicídio de um autarca e da sua família, mais de 700 polícias foram feridos e mais de 4.000 manifestantes detidos.

Perante isto foram ouvidas e lidas as habituais palavras de justificação ou desculpa desses comportamentos violentos e de índole criminal.

Segundo a teoria justificativa, a responsabilidade reside na marginalização e falta de oportunidades decorrentes da não integração na sociedade de muitos jovens da segunda e terceira geração de emigrantes, em especial de cultura religiosa islâmica, apesar de se assumir que desejariam integrar-se.

Não tenho dúvidas em afirmar que em França falhou em grande medida o processo de integração de emigrantes, por um misto de razões diversas e algumas delas da responsabilidade do Estado Francês.

Esse fracasso relativo existe, apesar do impressionante esforço feito pelo Estado Francês, a nível central, regional e local, com mecanismos de apoio a comunidades de emigrantes e da transferência maciça de meios financeiros que asseguram - a famílias de alguma dimensão - rendimentos que lhes permitem sobreviver, mesmo que os adolescentes se recusem a estudar e os jovens optem por não procurar ou aceitar empregos.

Não tenho dúvidas também que os grandes fatores integrativos do passado (a Igreja Católica, o sindicalismo, o serviço militar) se desagregaram e a religião dominante da emigração magrebina não tem sido capaz de contribuir de forma semelhante para esse processo de integração.

Perante a morte do jovem, o sistema judicial reagiu de acordo com as regras do Estado de Direito, indiciando o polícia pelo crime de homicídio voluntário.

Essa é evidentemente a solução, a única, que respeita as normas constitucionais e legais.

Não é admissível, em caso algum, que seja quem for tome nas suas mãos a aplicação de uma espécie (imprópria, aliás) de lei de talião, começando ações insurrecionais contra inocentes, muitos deles tanto ou mais desfavorecidos, do que o jovem que infelizmente faleceu.

Mas não foi isto que mais me motivou a abordar aqui o tema.

DESTROEM TUDO E NO FINAL GANHA LE PEN

Assumamos, assim e por isso, que não existe culpa ou responsabilidade dos insurretos, que os seus comportamentos têm origem na culpa do Estado ou dessa etérea realidade que se chama “Sociedade”, ou mesmo que têm causas justificativas que afastam a ilicitude ou que a atenuam ao ponto de dever ser muito leve a punição.

Digo isso porque a questão que quero abordar não é de base legal, mas sociológica.

Este tipo de comportamento violento indiscriminado gera muita insegurança nas comunidades afetadas e na sociedade francesa como um todo, que realço em três dimensões:

a) A tendência – injusta, mas muito intensa – para aumentar a reação de hostilidade a emigrantes e a seus descendentes, sobretudo aqueles que tenham origem magrebina;

b) A convicção de que o Estado não impede este tipo de comportamentos e por isso é fraco e não garante a segurança dos cidadãos e dos seus bens, o que descredibiliza as instituições e os setores moderados do espetro político;

c) A nostalgia de um tempo e de forças políticas que se assume que terão mais condições ou vontade de enfrentar este tipo de problemas com soluções que o sistema democrático atual não tolera ou não deseja (expulsão após retirada da nacionalidade, redução do assistencialismo para que os impostos dos franceses não sustentem quem não cumpre a sua parte do contrato social).

Numa palavra, degrada-se a coesão social, a legitimação do poder político, a aceitação indiscutida das regras da democracia formal. E assim se acentua uma crise que já vinha de trás.

Ponhamos os nomes às coisas:

(i) vão acentuar-se medidas anti-emigração indiscriminadas que acabam sempre por fazer pagar os justos pelos pecadores e provocar mais radicalização;

(ii) o Presidente Macron, ou muda a natureza do seu regime, ou vai acentuar a perda de legitimação bem patente no resultado da 2ª volta das eleições presidenciais de 2022 (58,5% contra 41,5% de Marine Le Pen);

(iii) Marine Le Pen pode mostrar-se moderada por estar estabelecida e consolidada a sua imagem de líder supostamente com Autoridade;

(iv) Nesse sentido, revela Jaime Nogueira Pinto no Observador, sondagem de 6 de julho considera Le Pen a pessoa mais capaz de resolver o problema da integração dos imigrantes magrebinos, seguida de Bardella (que lidera o partido que ela criou) e só depois Macron;

(v) Há cada vez maior possibilidade de que Marine Le Pen seja eleita Presidente da República em 2027.

As sociedades democrático-liberais são por natureza frágeis, pois exigem um equilíbrio difícil entre a Liberdade e a Segurança, entre o Pluralismo e a Ordem, numa palavra entre Liberdade e Democracia.

Onde a Liberdade afeta a Democracia, as sociedades resvalam para o Caos, onde a Democracia afeta a Liberdade, resvalam para o Autoritarismo

O que se passa em França é o risco de que o medo do Caos leve muitos a desvalorizar a Liberdade.

RELATÓRIO TAP: FRETE POLÍTICO, ABORTO TÉCNICO

O Relatório da CPI da TAP é, basicamente, um aborto do ponto de vista técnico e um frete político feito ao Governo.

Quando um partido detém a maioria da Assembleia da República, como é o caso, há como regra uma inversão da lógica do sistema constitucional: o Governo passa a controlar a Assembleia e não o contrário.

Mas para que esta situação não seja contraproducente exigir-se-ia que o controlo pelo Governo não seja feito – como acontece aqui – através de um Relatório que é provocador ao ponto de tratar todos os deputados da oposição como meros verbos de encher e os cidadãos como se fossem parvos.

Quando as coisas descambam deste modo, a credibilidade desce ao grau zero e a realidade vinga-se.

E não valia a pena. É verdade que a CPI demonstrou como governavam Pedro Nuno Santos e os seus “muchachos”, que Galamba não tem as condições mínimas de serenidade para um cargo político relevante, que o Governo faz batota na sua relação com empresas públicas e que agiu mal contra a CEO da TAP, pois foi evidentemente o responsável cimeiro do que se passou.

Mas nada disto é surpresa para quem não andasse totalmente distraído e o que convinha ao Governo era um relatório ponderado, equilibrado, que não nos atirasse poeira para os olhos.

Se assim fosse, a telenovela da TAP acabava. Assim não sendo, vai continuar viva.

HABITAÇÃO COMO MANOBRA POLÍTICA

Foi votado na especialidade o Pacote Mais Habitação.

Tudo começou com um número mediático de ultra-radicalismo da proposta inicial, feita para desviar atenções, para ser usada na campanha autárquica em 2025 e para depois de algumas cedências chegar a uma solução radical, mas que por comparação se pretende sugerir que é equilibrada.

Agora já sabemos o que vai ser aprovado na votação final na Assembleia da República. Limaram-se arestas, lançaram para o lixo alguns disparates mais excessivos, reduziu-se a dimensão da penalização da indústria turística, tornou-se o arrendamento forçoso apenas num outdoor de faz de conta.

Mas o que resta é mau que chegue:

a) Dupla tributação (aliás a vários títulos inconstitucional) da atividade de alojamento local e colocação sobre a indústria o risco de terminar em 2030;

b) Expropriação parcial do direito a cobrar renda habitacional (limitar a 2% o aumento em novos contratos), não permitindo a negociação livre entre partes;

c) Insistir em transformar o Estado num grossista de arrendamento.

Mas o objetivo político parece ter sido alcançado. No “Público” de sábado uma jornalista (Rafaela Relvas) numa longa página resume o resultado.

O título é “Mais Habitação chega ao fim com cedências a proprietários mas não a oposição”.

Os subtítulos são:

(i) “Mão mais leve sobre o AL”;

(ii) “Arrendamento forçado será ‘excepcional’ e limitado”;

(iii) “Fim de benefícios fiscais” (a fundos de investimento imobiliário);

(iv) “Senhorios pagam menos impostos”;

(v) “Novas rendas limitadas sem retroatividade;

(vi) “Rendas antigas congeladas”;

(vii) “Vistos gold mantêm-se para alguns casos”.

Um dos famosos power point de propaganda do Governo não faria melhor…

Mas infelizmente para Portugal, a estratégia radical seguida e mesmo a proposta final tem elevados danos reputacionais junto de investidores imobiliários e não vai resolver o problema da falta de habitação.

Claro que numa visão de curto prazo o outdoor “Mais Habitação” e o que parece ser um anúncio de página inteira no “Público”, surtem o efeito desejado: afirmar que o PS está do lado dos inquilinos e de quem não consegue arrendar casa e que tudo afinal termina bem para toda a gente.

Os efeitos a médio prazo serão tratados mais tarde, culpando quem precisar de ser culpado, com power point e “notícias” de página inteira.

O ELOGIO

O PSD lançou “Saúde - Agenda Mobilizadora 2030-2040”, assim chamado por ser um programa que pretende “colocar o sistema de saúde português entre os 10 melhores do mundo em 2040, tendo como meta intermédia o top 15 internacional em 2030”.

O programa merece elogio, não apenas pela sua ambição e qualidade, mas também porque é uma alternativa real ao modelo de Marta Temido sufragado pelo Governo que pretende coletivizar o SNS.

O título não é apelativo, é verdade. E o seu lançamento em termos de marketing pareceu-me frouxo e aparentemente (mas eu estive de férias fora de Portugal) nada estava previsto para que nos media surgissem opiniões e comentários favoráveis (só vi um artigo do Secretário-Geral do PSD no “Observador”, e creio que ele não é especialista na matéria).

Seja como for, já começou a ser atacado por Ricardo Pais Mamede. A rapidez da reação são boas notícias, pois o que seria grave para o PSD era receber elogios dele.

LER É O MELHOR REMÉDIO

Paulo Morgado, antigo CEO da CAP Gemini em Portugal, hoje sócio de uma sociedade de advogados, reeditou um livro de há 20 anos, com o benefício da experiência acumulada.

O título diz ao que vem: “100 Argumentos: a Lógica, a Retórica e o Direito ao Serviço da Argumentação” (Vida Económica”).

Em Portugal argumenta-se mal, de um modo geral. E não basta ter razão ou bons argumentos para ter sucesso: na política, na gestão, nos tribunais, na vida em geral, este livro será por certo útil.

A PERGUNTA SEM RESPOSTA

O comentador Pedro Adão e Silva (aliás com qualidade acima da média, reconheço facilmente) saiu de trás do ombro do Ministro da Cultura em que está encarnado, para se atirar como gato a bofe aos deputados que na CPI da TAP não estavam ali a servir o Governo.

Que disse o comentador Pedro Adão e Silva (PAS)? Coisas normais em quem comenta. Mas um Ministro não pode falar assim da Assembleia de República e dizer que deputados são “uma espécie de procuradores de cinema americano de série B dos anos 80” e que “comportamentos e lógicas das comissões de inquérito são elas próprias degradantes da função política”.

Louve-se a coragem de Lacerda Sales e de vários outros, que ousaram criticar o novo “xuxu” de Costa.

Mas fica a pergunta: PAS está a lançar o boné para o ringue para ser futuro candidato a Secretário-Geral?

Isto fez-me lembrar o que disse Pedro Nuno Santos em 2011, sendo Vice-Presidente do Grupo Parlamentar do PS: “estou-me marimbando para os nossos credores. Ou os senhores se põem finos ou nós não pagamos. E se nós não pagarmos a dívida e se lhes dissermos, as pernas dos banqueiros alemães até tremem!"

Se ele dissesse isto como Ministro das Finanças, seria idêntico ao que agora fez PAS. Tudo medido – calcule-se! – PNS é hoje menos insensato do que PAS.

A LOUCURA MANSA

O episódio de um “cartoon” com um polícia a disparar sobre um negro não merece tanto processo crime.

Mas merece uma reflexão pois os efeitos foram alcançados: um polícia matou um magrebino em França, a polícia em Portugal é culpada de racismo.

As caricaturas são assim. Mas os seus efeitos, desejados ou não, são evidentes… até porque o enviesamento ideológico é total. Ou será apenas porque a extrema-esquerda, os que pegam fogo a França e os que os apoiam não fazem sorrir?

Ou seja, é uma loucura pegar fogo a caricaturistas. Mas é uma loucura maior quando caricaturistas pegam fogo a searas secas…

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate