Opinião

O silêncio de Le Pen

O silêncio de Le Pen

Henrique Burnay

Consultor em Assuntos Europeus

Os extremos escolheram um dos lados na crise francesa dos últimos dias. Racistas contra imigrantes ou pobres contra os abusos do poder. Macron tem de repor a ordem, primeiro, e responder à crise social depois. Le Pen tem eleitores de ambos os lados e precisa de os convencer que o seu Estado os protegerá a todos. Dizendo o menos possível

Marine Le Pen falou o menos que pôde sobre Nahel, o rapaz de 17 anos morto pela polícia em Nanterre, e sobre as manifestações e vandalismo que se seguiram. Não foi por acaso. Falou de ordem, mas não de criminosos. Pediu ação mais eficaz, mas não exigiu o Estado de Emergência. A sua tentativa de chegar ao poder tem passado por cativar eleitores que não acreditam no sistema. Muitos deles, por estes dias, estão dos dois lados das barricadas. E precisa de ser capaz de governar um país inteiro, não apenas liderar uma fação.

Ao contrário da extrema-direita reacionária, que não hesitou em se fixar no lado securitário e em acusar a imigração de todo o mal que está a acontecer, sem dúvidas sobre a violência policial ou as políticas de integração, e da extrema-esquerda de Melénchon que não consegue, nem quer, condenar claramente a desordem porque vive da recusa do sistema, em geral, e da recusa da ordem e da autoridade em particular.

A morte de Nahel e as manifestações que se lhe seguiram dão para várias discussões. Todas elas justificadas. É impossível não ver naquele vídeo um manifesto abuso e violência policial. E no comunicado que os sindicatos da polícia emitiram, e onde falavam de guerra, uma ameaça ao próprio poder, usando linguagem incendiária. Assim como é impossível não discutir racismo e políticas sociais e, de caminho, a integração da população de origem imigrante, às vezes em segunda, terceira ou quarta geração, que faz grande parte daqueles bairros. E daquelas manifestações violentas. Da mesma maneira que é impossível olhar para o que aconteceu e não querer falar sobre quem não tem esperança. Ou sobre a polícia, quando abusa e quando é abusada. Todas estas conversas precisam de ser tidas. Mas, aos radicais de cada lado, só parte delas interessa.

Nos primeiros dias, França dividiu-se em três. Os que compreendiam e justificavam os motins, porque só viam, e só queriam ver, o racismo e a violência policial. Os que defendiam a polícia desde o primeiro momento, desde o tiro fatal, porque em caso de dúvida suspeitam sempre “dos pretos e dos árabes”, mesmo que consigam não o dizer assim. E, no meio, uma parte razoável, provavelmente maioritária, que conseguia condenar a óbvia violência policial e condenar as manifestações violentas, os incêndios de escolas, bibliotecas e carros, os assaltos a lojas de roupa e de tecnologia (não exatamente supermercados) e a desordem geral. No meio disto, Marine Le Pen preferiu o quase silêncio. Falou tarde, pouco e disse que era preciso ordem, talvez algum recolher obrigatório pontual e pouco mais. E, segundo as sondagens, ganhou votos.

A extrema-direita clássica, de Zemour, quer ser identificada com a ordem e com a recusa da imigração. A extrema-esquerda de Melénchon quer ser reconhecida pela recusa da ordem e da autoridade. Macron tem de apanhar os cacos. Todos. Os da desordem e os da fatura social. Le Pen quer agradar ao maior número possível. Aos que, de ambos os lados, duvidam do sistema. Sabe que à direita a presumem pela ordem. De resto, parte do seu partido falou como seria de esperar: contra os manifestantes, a imigração e a desordem e ela não falou contra a polícia. Mas mostrou-se chocada com a morte do rapaz.

Le Pen sabe que nos bairros sociais também tem eleitores, que a presumem pelas políticas económicas contra a globalização que lhes rouba empregos. O seu silêncio é tático. E rende votos. Le Pen está a ir da extrema-direita clássica para o extremo-paternalismo. Ao pé de Zemour e Melénchon vai parecer moderada. Ao pé de Macron, vai parecer preocupada e capaz de liderar a República. Em vez de atiçar o ódio, promete fazer o Estado chegar a todos. Uma tentação.

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