A informação acessível, sobre as estufas em Odemira e os bivalves no Tejo, não tem beneficiado da cooperação de entidades empregadoras ou angariadoras de mão de obra, por opção própria delas. Assim, parece poder concluir-se que se trata de situações que parecem chegadas de épocas passadas na Europa e de regiões longínquas neste nosso tempo
Por vezes temos dúvidas sobre a realidade, outras vezes temos certezas, também acontece não percebermos o que se passou ou vir a ser clarificado e esclarecido o que erradamente assumíamos... ou não.
De tudo isto se faz o Mundo e este programa.
Como se verá de seguida.
DE OUTROS TEMPOS E OUTROS ESPAÇOS
O primeiro tema é, infelizmente, uma certeza.
Na passada semana surgiram abundantes notícias relativas à forma como são apanhados bivalves na zona da Ponte Vasco da Gama. A imagem é de 2019, mas uma rápida busca na Google leva-nos para mais de 10 anos em que tudo isso ocorre “Às portas da capital, aos olhos de todos”, como referiu há meses (no jornal “O Setubalense”) Bruno Nunes, deputado do CHEGA.
Essas notícias não diferem muito no essencial do que nos passados anos pudemos ver, ouvir e ler em relação a estufas, sobretudo na zona de Odemira.
Trata-se de atividades que não podem ser deslocalizadas, através de cadeias de produção, para zonas do Mundo onde as condições de emprego e sua segurança são muito inferiores ao que se usufrui na Europa.
A melhoria das condições de trabalho na Europa, a partir de meados do Século XIX, foi o resultado de décadas de progresso económico, lutas feitas por trabalhadores organizados, ação de intelectuais ativistas e de instituições como partidos políticos, organizações religiosas, meios de comunicação social e associações beneméritas.
A informação acessível, sobre as estufas em Odemira e os bivalves no Tejo, não tem beneficiado da cooperação de entidades empregadoras ou angariadoras de mão de obra, por opção própria delas.
Assim, parece poder concluir-se que se trata de situações que parecem chegadas de épocas passadas na Europa e de regiões longínquas neste nosso tempo.
De facto, é como se tivéssemos entrado numa máquina do tempo ou num voo supersónico que nos transportam para onde não estamos.
Perante isto, duas teorias são possíveis e no meu caso não tenho elementos para concluir se a realidade corresponde a uma ou a outra, ou provavelmente a ambas e em proporção que também não saberia definir.
Uma teoria é que tudo isto se deve a empresários sem escrúpulos, que exploram os “danados da terra”, como o faziam outros semelhantes no início da Revolução Industrial no Século XIX.
Outra teoria dirá que estas atividades empresariais não podem ser realizadas de outro modo que não seja com imigrantes para os quais as condições de trabalho e de vida que nos chocam são uma melhoria muito grande em relação ao que existe nos países de onde emigram para exercer estas atividades.
Para além disso, existe uma terceira teoria que assume a dupla causalidade, em que a exploração é possibilitada pelas assimetrias de desenvolvimento e oportunidades no mundo atual, mas é potenciada por falta de ética de alguns empresários sem escrúpulos, sequiosos de lucros rápidos e excessivos, indiferentes ao sofrimento daqueles que no fundo não consideram ser seus semelhantes.
A HIPOCRISIA DA BOA CONSCIÊNCIA
A questão que me interessa não é manifestamente a análise das causas do que vemos, ouvimos e lemos, mas a comparação com o que foi o combate no século XIX.
Nesses tempos longínquos não havia nem os instrumentos legais nem a recusa cultural generalizada contra abusos, de que felizmente beneficiamos no século XXI europeu.
Por isso, em minha opinião, o que convém analisar, para procurar encontrar as causas, é a resignação generalizada entre nós e como convivemos com uma espécie de “extra-territorialidade e extra-temporalidade”, como se ghettos de Séc. XIX e de exóticos países sem proteção de trabalhadores se pudessem instalar entre nós.
Só isso permite explicar a aparente indiferença do Estado e seus instrumentos de ação, dos sindicatos, dos partidos políticos, das igrejas, das instituições, das associações beneméritas, para com este tipo de realidade no nosso tempo e no nosso espaço.
Ou seja, esta resignação diz muito sobre nós e sobre a hipocrisia em que construímos a nossa boa consciência e autoestima, sem o que não poderíamos ser felizes.
Realmente uma sondagem sobre este tema daria seguramente uma quase unanimidade na repulsa, o que em condições normais seria razão para que se tornasse uma prioridade política e social.
E, no entanto, não é assim. Se compararmos os esforços que se fizeram no Século XIX para melhorar as condições de vida e de trabalho com os esforços que se vêm no Século XXI em Portugal, a evidente resposta é uma pergunta:
Como é possível a boa consciência, que nos dão as nossas convicções, sobreviver com a inação que nos traz a nossa indiferença?
COSTA-DEUS DO ANTIGO TESTAMENTO
Segue-se uma (aparente) certeza.
Durante anos sempre disse que, em minha opinião, António Costa não ia largar o Governo para presidir ao Conselho Europeu.
Interpretei a sua insólita escala na Hungria como sinal de que – assumindo que depois das eleições europeias poderia deixar o PS com dinâmica de vitória – afinal iria para Bruxelas sem poder ser acusado de deserção.
Parece que afinal o meu instinto estava certo e na passada semana me deixei enganar pela aparência fugidia dos factos.
António Costa, agora e segundo o Público, foi totalmente perentório: não vai para Bruxelas em 2024, quer governar até 2026 e “não afasta a possibilidade”, diz o Público, de se candidatar mais uma vez para ficar a governar-nos até 2030.
O problema com Costa, no entanto, é ser em regra escorregadio no que diz. E que disse ele à jornalista São José Almeida? O seguinte: “eu sou o garante da estabilidade. Já expliquei a todos que não aceitarei uma missão que ponha em causa a estabilidade em Portugal. Alguma vez eu poria em causa a estabilidade que tão dificilmente conquistei?”.
O que foi dito, para não ser citado, é perentório. São José Almeida é de esquerda, mas não é de fretes. Mas o que ele autorizou que fosse citado, não é claro, apenas um sinal de vaidade e orgulho que parece do Deus do Antigo Testamento.
Ou seja, Costa-Deus é o garante da estabilidade. Era o que faltava que a pusesse em causa. Mas se o PS tiver um bom resultado nas autárquicas e for escolhido para sucessor quem ele queira, qual Deus-Pai, Costa decreta que a estabilidade está assegurada e pode ir à sua vida.
Claro que São José Almeida vai ficar furiosa, por ter sido instrumentalizada. Não foi a primeira nem será o último jornalista a sê-lo.
Portanto, parecia uma certeza e afinal fica a dúvida.
RÚSSIA: A CERTEZA DA DÚVIDA?
Onde parece haver uma unanimidade na certeza tem a ver com o que Prigozhin fez no fim de semana. Mas a certeza é, afinal, uma enorme dúvida.
Todos os especialistas mais ou menos competentes, e até o extraordinário Agostinho Costa, não têm dúvidas: não se sabe a razão do que fez Prigozhin, o que realmente pretendia, que efeitos tem isto na Guerra na Ucrânia, se enfraqueceu Putin ou se o fortaleceu.
Ou seja, total certeza na dúvida absoluta.
Concordo, evidentemente, que tudo se passou de uma forma que não ajuda a que se perceba quase nada.
Mas ainda assim, tenho opinião:
a) Putin sai enfraquecido, por afinal se perceber que é vulnerável;
b) A solução para superar isso é aumentar a radicalização na Ucrânia e na Rússia, pois os fracos ou enfraquecidos é assim que atuam;
c) Prigozhin é o grande derrotado, como em regra acaba por acontecer aos mercenários desde que o Mundo é Mundo, quando não conseguem cortar a tempo e de um só golpe a cabeça de quem lhes paga;
d) Mas Putin mostrou a sua frieza, ao não destruir os 8 mil mercenários que marcharam para Moscovo, antes tendo talvez usado instrumentos de coação a que até Prigozhin foi sensível.
Em resumo, as notícias do fim do putinismo são manifestamente exageradas.
O ELOGIO
A intervenção do Governo nas Ordens Profissionais é tema que vai andar por aí.
Soube-se agora que as audições e o debate na especialidade serão feitos na Comissão de Trabalho e Segurança Social da Assembleia da República.
Esta decisão em relação à Ordem dos Advogados esquece – deliberadamente ou não – que o tema tem a ver com o exercício de uma função constitucional do acesso à Justiça e com o Estado de Direito, ou seja, que é na 1ª Comissão (Assuntos Constitucionais) que deve ter lugar.
Foi essa a proposta do PSD, que merece elogio.
Resta saber se agora se vai abrir um espaço de diálogo, cedências mútuas, fuga ao radicalismo.
LER É O MELHOR REMÉDIO
Um dos grandes prazeres que retiro deste programa é sugerir a leitura de livros. Por vezes são obras que estou a ler, li recentemente ou vou ler em breve.
Mas um acrescido prazer me dá regressar a livros que foram estruturantes na minha vida.
É o que se passa com a trilogia de Isaac Asimov (“Fundação”, “Fundação e Império” e “Segunda Fundação”, editada por Livros do Brasil e reeditada por Saída de Emergência), considerada por muitos como o melhor romance de ficção científica de todos os tempos.
Este tipo de ranking é sempre subjetivo, mas estes três pequenos livros escritos há 70 anos (1951-3) estão vivos como grande literatura que são: uma ode à Civilização, aos desafios que a podem destruir, ao papel dos cientistas e intelectuais para a manter viva no meio das trevas.
Depois de ler estes livros – há cerca de 50 anos - passei a olhar para o Mundo e as Coisas de outro modo e isso ajudou-me a ser melhor como ser humano e Cidadão. Se não consegui, a culpa é apenas minha.
A PERGUNTA SEM RESPOSTA
Se alguém tivesse dúvidas sobre o estado da Justiça e do desleixo que a rodeia não faltariam exemplos para o demonstrar.
É o caso da demora de um ano e meio para se traduzirem 19 páginas a pedir à Justiça francesa para interrogar quem vandalizou o Padrão dos Descobrimentos.
Há dias outro vândalo voltou a danificar património cultural num idiota protesto ideológico, potenciado pelo desleixo da nossa investigação criminal.
A pergunta é simples e óbvia: até quando o desleixo continuará impune?
A LOUCURA MANSA
O Governo anunciou com grandes parangonas que ia dar subsídios de renda e definiu os seus critérios, alocando 240 milhões de euros para tal fim.
Segundo parece, quando foram depois fazer as contas, descobriram que seriam necessários 1000 milhões de euros, ou seja, um aumento de 400%.
Solução? Mudar a lei por despacho e tirar o pão da boca a muita gente que no momento da propaganda foi cativada.
Resultado? Perda de credibilidade do Estado e prejuízo para as classes médias