Na semana passada, Sergei Karaganov publicou um artigo na revista russa anglófona “Russia in Global Affairs”. De forma resumida, mas nem por isso menos contundente, o politólogo e pensador do Kremlin formula a sua grande ideia: a Rússia deve usar a arma nuclear para atingir os seus fins. E estes consistem, nas suas próprias palavras, em “mandar bugiar” o Ocidente “para que a Rússia e o mundo possam avançar sem impedimentos”.
A justificação para uma solução tão radical é existencialista: trata-se de uma escolha entre morrer ou morrer. Ou seja, se a Rússia não recorrer a este sacrifício último em que o país pode ser erradicado da superfície do planeta, o outro mal inaceitável é a morte da sua civilização. Assim, usar a “arma de Deus” e provocar o Armagedão é não só aceitável como será reconhecido pela História porque, diz Karaganov num tom de profeta, “no final, os vencedores não são julgados. E os salvadores ficam agradecidos.”
O pano de fundo do argumento é sobejamente conhecido e recalcado pelo regime de Putin usando inversões históricas. Assim, a guerra na Ucrânia foi provocada pela decadência geral do Ocidente e em particular das suas elites, cuja dominação colonial do mundo deve ser confrontada. A Ucrânia serve os argumentos do Estado-civilização russo e do antiocidentalismo, uma vez que Kiev é o peão nas mãos de “Biden e companhia” para impor “ideologias anti-humanas” que pervertem a essência do homem. Os valores russos defendem “família, pátria, história, amor entre um homem e uma mulher, fé, compromisso com ideais mais elevados”.
Para além do aparente delírio existencialista e paranoico, o ponto central do artigo de Karaganov mostra que a Rússia é uma potência nuclear em sérias dificuldades na Ucrânia. É a arma do fraco e não do forte, como ilustram as suas tiradas sobre a intervenção divina para instilar medo nos homens para que deixem de se guerrear em conflitos mundiais. Com a ameaça nuclear, pretende salvar não só a Rússia mas também o mundo de cinco séculos de colonialismo e a própria humanidade. E assim, pôr em prática um redirecionamento prioritário do país para a Ásia e em particular para a China.
A propósito de Beijing, percebemos também a fraqueza do país. Em jeito subserviente, Karaganov perspetiva o seu apoio à China contra os Estados Unidos e a compreensão do Império do Meio para as suas opções bélicas, porque, no final, todos beneficiariam, num futuro descrito de forma evasiva e pseudoinclusivo, a nível mundial (até os ocidentais beneficiariam do caminho da redenção, seja ela terrestre ou já no Além).
Quem é Karaganov e para quem fala? Ele retoma aqui a sua ideia de “Grande Eurásia”, desenvolvida desde 2015, abandonando a “Grande Europa” promovida em 2010. No contexto de guerra na Ucrânia, vista como uma guerrilha, Moscovo deve consumar rapidamente uma vitória de modo a concretizar o desígnio imperativo de se focar no leste da Eurásia.
Karaganov é um ideólogo influente do Kremlin mas surge também como um oportunista que se vai adaptando às circunstâncias. Se por um lado o seu texto não pode ser levado a sério enquanto ameaça efetiva de recurso à força nuclear, por outro lado a sua opinião vai ao encontro de uma relevante franja da população. Para os “patriotas Z” existem muitas justificações para a agressão russa da Ucrânia. A letra “Z”, em latim, proliferou como símbolo de um patriotismo exacerbado de apoio à “operação especial” russa na Ucrânia.
Num país em que, usando uma expressão russa, “a televisão derrotou o frigorífico”, as sanções não só não afetam uma população habituada a crises e perdas e a viver em modo de sobrevivência como, em contexto de forte propaganda fascista, fomentam o sentimento antiocidental. Mesmo não sendo um “patriota Z”, nas grandes metrópoles pouco se sente da guerra, existe apatia social e os oportunismos económicos surgem no lugar deixado vago por aqueles que partem.
O “Kissinger” russo não se preocupa com as populações, mas com os grandes equilíbrios de poder mundial, e lembra que a Rússia ainda é uma grande potência, porque tem fogo nuclear e é útil à China na sua rota hegemónica contra Washington, tirando benefícios de tal alinhamento. O verdadeiro Kissinger, antigo secretário de Estado norte-americano, fez polémica no verão passado quando preconizava cedências ucranianas para um desfecho rápido da guerra e que não fosse uma derrota decisiva para Moscovo. A chantagem nuclear visa permitir este resultado e reforçar os objetivos imperialistas de um regime fascista.
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