Nos últimos tempos os media em Portugal têm cozido textos a partir de fontes policiais, nomeadamente da Polícia Judiciária, revelando que 700 membros de dezenas de gangs na Área Metropolitana de Lisboa estão sob vigilância.
A divulgação dessa narrativa, na dependência estrita da fonte policial, cria duas situações: a dificuldade de confirmação das fontes e a sua inverosimilidade, traindo o conhecimento público.
Na última edição do Expresso no artigo com o título “Há 50 grupos violentos em Lisboa” são até nomeados alguns desses gangs: 503, RBL, FDL, PMB Brutuz, Fivekapa e The 707 Gang; dando ao leitor alguma convicção sobre matéria.
O problema é que nenhum dos grupos citado é um gang. 503 é a nomenclatura dada pelos jovens ao Bairro de Realojamento do Casal da Boba (5 prédios, o largo mais 3 prédios – 503). É usado por dezenas e dezenas de jovens e crianças nos perfis de Instagram, Snapchat e Youtube. A atribuição de novas identidades aos territórios onde vivem é normal por parte dos jovens, principalmente quando tanto eles como os pais não tiveram nenhuma participação sobre o lugar onde moram e sua toponímia. Do mesmo modo que os moradores realojados no Bairro dos Navegadores não gostam, por questões históricas e evidentes, de nomear desse modo o sítio em que vivem, utilizando em alternativa a sigla “TLD” de Talaíde, a localidade onde se situa o Bairro.
É na mesma sequência que “RBL” é a sigla que abrevia a localidade de Reboleira. “RBL” é utilizado por centenas de jovens e crianças. Não é por se acrescentar a palavra “gang” a seguir a cada uma dessas denominações que eles passam a existir.
FDL são um grupo de solidariedade de jovens da cidade de Queluz que já vai na segunda geração. Uns cantam, outros fazem videoclips, outros ainda fazem hortas urbanas e dedicam-se à economia circular.
PMB Brutuz é um grupo de rap e o Fivekapa é literalmente um (singular) rapper. Honestamente nunca ouvi falar dos “The 707 Gang”, a não ser que seja a facção dos crips asiáticos na Califórnia.
Se um dos FDL cometer um crime, isso apenas quer dizer que o cidadão x que canta com o nome de “FDL” cometeu um crime e não que o grupo é uma estrutura organizada para o efeito. O mesmo para o morador do Casal da Boba que o faça. Apenas quer dizer que um morador de 503 cometeu um acto ilícito e não que 503 seja um gang.
Imagine o leitor o abuso que seria, olhando para os inúmeros ilícitos públicos e notórios de membros do Partido Socialista e do Partido Social Democrata, classificar esses partidos de gang. Ou dizer que a Rua Brancaamp e a Quinta da Marinha são zonas suspeitas de acumulação de actividade criminosa.
As instituições policiais não devem destacar-se das demais do estado no que respeita à responsabilização colectiva. A promoção de generalizações sobre determinados territórios e seus moradores enviesa as respectivas soluções.
E sendo assim, a quem interessa esta narrativa? É para a atribuição de mais meios policiais para as denominadas Zonas Urbanas Sensíveis? Para manter a narrativa que subjaz a sua existência? É uma resposta às denuncias independentes internacionais da actuação das forças polícias nesses territórios? Para forçar as existência de políticas de cidadania através da administração interna como os Contratos Locais de Segurança?
Na falta de equidade de acessos destes jovens aos direitos consagrados na nossa constituição - educação, saúde, cultura, habitação digna - espanta-me a normalidade com que a sua relação com o Estado é apenas mediada pela polícia. E essencialmente, perturba-me as interrogações ausentes:
Como assim há centenas de jovens em idade escolar em abandono escolar? Que é feito do papel da escola? Onde estão as políticas para o reingresso escolar ou suas alternativas? Por que é que a escola falha? Onde estão os espaços de lazer para estes jovens? Existem?
Em que condições os pais destes jovens trabalham? Quantos turnos têm de fazer para um vencimento adequado às despesas? Quantas horas estão afastados dos seus filhos ou encarregandos? O que podemos fazer para combater a precariedade laboral dos pais destes jovens? Como podemos agir perante a sua ausência?
Que serviços existem à disposição das populações que habitam nos bairros mencionados?
Ao invés de nos entregarmos a narrativas que apelam à construção do “outro” – que foi o que sempre fizemos com alto grau de insucesso – , se calhar está na hora de olhar para as nossas políticas públicas colectivamente, com a voz das comunidades e perceber o que realmente deve ser feito. Isso claro, se formos todos pela coesão social e autodeterminação da natureza dos desejos de uma sociedade plural.