As condições atuais de risco levam a que se multipliquem, nos espaços públicos, laborais e outros, simulacros de emergência para aferir da operacionalidade dos sistemas contra incêndios, atentados terroristas, fenómenos naturais, etc. Isso tem uma contraindicação: as entidades encarregadas da resposta e as pessoas em geral habituam-se a ser a fingir; e quando é a sério não reagem como deviam. Quando olhamos para a atuação das instituições e das pessoas no caso do computador desencaminhado pelo adjunto, é manifesto que as instituições não reagiram como deviam. Mais preocupante ainda: as instituições tardam a reconhecer que não agiram como deviam. Ainda mais preocupante: como tardam a reconhecer que não agiram como deviam, tardam a admitir que há deficiências estruturais dos mecanismos de resposta e que essas deficiências ficaram patentes. As reflexões que se seguem procuram contribuir para esse debate, decerto menos picante e mobilizador do que procurar definir responsabilidades políticas, criminais, disciplinares, mas mais estrutural.
Primeiro, a informação truncada que se dispõe sobre a forma como os responsáveis do Ministério das Infraestruturas reagiram a uma eventual quebra de segurança relativa a infraestrutura crítica revela uma atuação quase anárquica de cumprimento de um protocolo de reporte, uso de vias de comunicação que não se sabe como devem ser desencadeados e dirigidas a quem (será que se possuía sequer o número de telefone…?), comunicações realizadas sem conhecimento do Ministro e diligências do Ministro sem conhecimento dos seus colaboradores diretos - que promoviam mais ou menos as mesmas diligências -, telefonemas múltiplos e cruzados cujo racional custa a vislumbrar. Presumivelmente (isto é uma especulação, baseada apenas em elementos contextuais), o reporte terá sido feito debaixo de grande perturbação, de modo pouco objetivo, dando talvez uma imagem desfocada e desproporcionada dos acontecimentos, e sem que os interlocutores do SIRP (ou quaisquer outros) pudessem obter elementos adequados para aferir cabalmente da natureza, grau de urgência e alcance do risco de segurança. Tudo isto terá de ser afinado,
Segundo, não há indicação, até ao momento, de que tenha existido articulação entre os órgãos de coordenação dos sistemas de segurança interna e de informações. Ora, parece óbvio que perante notícia de evento grave de segurança conhecida por qualquer dos dois vetores, deve haver, quase instantaneamente, uma articulação entre os responsáveis daqueles sistemas ou de unidades operativas deles, que permita, num espaço de minutos, reunir e partilhar informação, avaliar sumariamente o risco e definir as medidas, mecanismos e instrumentos a mobilizar de imediato, incluindo os meios operativos a acionar. Teria sido essa articulação que permitiria, por exemplo, definir, face às circunstâncias, o perfil dos agentes a mobilizar e as ações a praticar, tendo em conta a repartição de competências definidas na lei. Teria sido nessa instância que seria verificado que, no quadro concreto, a ação a tomar caberia a entidades com habilitação legal para praticar atos próprios das funções policiais, entre as quais não se encontra o SIS.
Terceiro, é absolutamente incomportável que, verificando-se efetivamente uma ameaça grave de segurança, a resposta, lícita ou ilícita, tenha tardado horas. De duas, uma: ou havia efetivamente uma ameaça com essa configuração, e a resposta teria de ser acionada em minutos e não em horas; ou não se considerava que houvesse efetivamente essa ameaça e ainda se torna mais incompreensível a intervenção policial do SIS, pois, nesse caso, nem se pode invocar que estejam preenchidos os pressupostos do estado de necessidade. O grau de prontidão da reação dos sistemas revelado neste evento é estarrecedor. Se, perante a notícia da existência de uma bomba prestes a deflagrar no aeroporto, for previsível que a resposta demora duas horas, é melhor começarmos rapidamente a repensar o sistema.
Quarto, é preocupante que mesmo forças políticas com responsabilidade no consenso em torno da arquitetura atual do SIRP não alcancem que é de todo indesejável expor componentes operacionais do sistema – neste caso, o SIS – a comissões parlamentares de inquérito. Se existe disponibilidade para os comprometer e expor dessa forma à opinião pública, mas também aos olhares indiscretos dos inimigos (e aos olhares perplexos dos amigos), então o melhor é extingui-los. Quem deve funcionar como uma espécie de comissão parlamentar de inquérito permanente é o Conselho de Fiscalização do SIRP.
Quinto, o episódio acentuou a suspeita (talvez injusta) de que o Conselho de Fiscalização do SIRP não consegue ter distância suficiente em relação às entidades que fiscaliza. Não se trata de suspeita que diga especificamente respeito à atual composição do Conselho de Fiscalização, mas sim de suspeita que vem de trás. É muito possível que a estrutura e composição do Conselho de Fiscalização tenha de ser repensada. Não para aumentar o número de membros ou para reforçar a componente político-partidária, como aconteceria, por exemplo, se fosse adotada uma solução legislativa que impusesse a representação de mais partidos. Pelo contrário, há que mitigar (o que não quer dizer eliminar) a conotação política do Conselho. Por exemplo, estabelecendo que ele é forçosamente presidido por um magistrado judicial ou do Ministério Público sénior e vedando a possibilidade de ser membro do Conselho a quem é ou tenha sido titular de cargos políticos há menos de n anos.
Uma última palavra. Tenho a certeza de que mesmo que o Governo pressionasse os serviços do SIRP estes agiriam sempre ao serviço do interesse nacional e não guiados pelos interesses do Governo. E tenho a certeza de que em 26 de abril, como nos outros dias, procuraram fazer o melhor. Mas isso não é suficiente para nos tranquilizar.