Se estivéssemos nos anos após 1989 e a queda do muro de Berlim, era provável que o Ocidente tivesse assumidamente preferido e apoiado Kemal Kilicdaroglu contra a Recep Tayyip Erdoğan e que, com esse apoio, o candidato da oposição tivesse ganho. Mas não foi isso que aconteceu. O Ocidente, a começar pela Europa, que já gostou do atual Presidente, desta vez preferia a derrota de Erdogan, mas não o diz claramente nem a consegue impor discretamente. O que é um excelente retrato do que se passa no mundo e de como os equilíbrios estão a mudar.
Entre o final da década de 1980, com a União Soviética em crescente agonia, e a década de 1990, com Moscovo fora do jogo internacional, houve uma aceleração da democratização, em alguns casos improvável e inesperada. Todos os países da Europa Central e de Leste (Polónia, Hungria, Checoslováquia, Roménia, Bulgária), incluindo os que antes não existiam autonomamente (Estónia, Letónia, Lituânia), Mongólia, Indonésia, Coreia do Sul, Angola, Moçambique, África do Sul, Chile. A lista de países que se democratizaram (melhor ou pior) nas vésperas ou depois do final da Guerra Fria é extensa e significativa. E tem uma grande explicação (além de todas as outras que Samuel Huntington ensaiou).
O fim da Guerra Fria coincidiu com uma forte onda democrática em vários lugares do mundo. Isso só foi possível porque os soviéticos deixaram de apoiar os seus aliados, fundamentalmente regimes não democráticos, e os ocidentais deixaram de ter de tolerar os regimes autoritários que eram seus aliados. E assim se expandiu a democracia. E o comércio.
Com o desaparecimento da União Soviética, a maioria dos regimes apoiados por Moscovo deixou de ter as condições políticas e económicas para sobreviver, e deixou de ter razões geopolíticas para estar contra os Estados Unidos. Da mesma maneira, com o fim da potência alternativa, os Estados Unidos deixaram de ter as razões que tinham para apoiar ou tolerar regimes não democráticos. No Chile ou na Indonésia, na África do Sul ou na Coreia, para recordar alguns exemplos. E também houve casos, como em Angola ou Moçambique, por exemplo, em que os americanos abandonaram os aliados tradicionais, na oposição - por vezes armada -, e fizeram as pazes e os negócios com os poderes efetivos. Óbvia e notoriamente, isto não foi assim por toda a parte. Na Arábia Saudita, por exemplo, havia interesses (ou melhor, dependências) mais importantes e mais fortes do que a democratização. Mas, em muitos outros lugares, o processo foi este.
O que as eleições turcas recordam é que este tempo acabou. O pós-Guerra Fria, em que os países já não podiam escolher (ou ameaçar escolher) um dos lados, acabou. E o tempo em que os eleitores americanos ou europeus exigiam pergaminhos democráticos aos seus aliados (a muitos, pelo menos), vai acabar também. Neste sentido, mais do que em muitos outros, voltámos ao tempo, ou à lógica, da Guerra Fria: inimigo do meu inimigo, meu amigo é. E, se não for nosso amigo, pelo menos que não seja amigo dos outros (da Rússia ou, principalmente, da China).
É neste contexto que têm de se ler três coisas sobre as eleições turcas: a preferência ocidental pelo candidato da oposição (porque dava sinais, publicados, de preferir a democracia liberal, o respeito dos direitos humanos e a maior proximidade ao Ocidente); o cuidado em não provocar excessivamente Erdogan (porque o atual Presidente pode ganhar de novo e é mais importante que não se afaste demasiado do Ocidente, da NATO e da Europa e Estados Unidos do que seja uma democracia) e, finalmente, a possibilidade de Erdogan oscilar entre um lado e o outro da guerra e do mundo (porque ambos os lados precisam de si e nenhum dos dois o quer alienar definitiva e irremediavelmente. Pelo menos sem ter a certeza de que Erdogan perde). Esta compreensão das eleições turcas permite uma antecipação do que aí vem.
Obviamente, a Europa e os Estados Unidos preferem democracias. Porque as democracias se entendem melhor entre si, porque os eleitorados das democracias toleram mal o apoio a autocracias e porque as democracias promovem a prosperidade e tendem a viver em capitalismo. Pelo contrário, os regimes autocráticos preferem que as democracias se mantenham à distância. Para não dar ideias aos seus povos e, sobretudo, porque é mais fácil fazer negócios quando não há um povo a ver e a reagir. Mas a preferência ocidental e europeia pelas democracias vai ser temperada pela realidade das coisas. Pior do que uma Turquia não verdadeiramente democrática e inequivocamente do lado de cá, seria uma Turquia assumidamente pró-russa ou pró-China.
A outra lição que está a ser tirada destas eleições turcas é sobre o poder que os países desalinhados podem e, muito provavelmente, querem ter. Na atual fase da competição, alguns (muitos) países fazem questão de manter o maior número de opções possíveis em aberto. Melhor do que estar do lado da China, da Rússia ou do Ocidente, é ser cortejado por cada um deles.
Tudo isto, porém, tem limites. E vai ter de ser respondido. O Ocidente sabe que não pode ter só aliados democráticos. E também sabe que ser-se uma democracia não é uma garantia de alinhamento (veja-se o Brasil, por exemplo). Mas sabe que as democracias são, na quase totalidade, aliados prováveis. Mesmo que não possam ser os únicos. Entretanto, por falta de apoio de uns e pelo apoio dos outros, o certo é que algumas democracias vão morrer, lentamente ou não, à vista desta competição renovada. O que é um mal para o Ocidente que ainda não sabemos resolver.
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