Opinião

Quando vamos deixar de ostracizar a dor?

Quando vamos deixar de ostracizar a dor?

Tiago Fortuna

Fundador da Access Lab

A discriminação é uma forma de infligir a nossa dor no outro. Talvez por isso tantas vezes, nós, pessoas com deficiência, sejamos percecionados como “revoltados”. Não somos - demonstramos cansaço perante tanta impunidade, paternalismo e condescendência.

A 6 de dezembro de 2022 fiz uma fratura de stress num fémur. Não falo com a maior parte dos meus colegas, ou na gíria pública, sobre a minha doença - é uma questão profundamente íntima e este texto é uma exceção. Não falo pela exploração mediática e social gratuita que é feita da dor. Sou muito mais do que isso, a doença é apenas uma característica na minha existência.

Decidi fazê-lo agora porque estou há 4 meses em recuperação. A minha doença manifesta-se sobretudo na infância, adolescência e terceira idade, mas, de repente, perdi a estabilidade e fui pela primeira vez confrontado com ela enquanto adulto.

Até aqui tinham sido sempre os meus pais a tomar as decisões, agora não. Tudo passou - e passará doravante - pelo meu crivo e capacidade de discernimento. Isto acontece num momento de prosperidade e realização profissional com a Access Lab (startup que cofundei para trabalhar a inclusão de pessoas com deficiência), o que é paradoxal porque questiona todas as conceções de conquista que pensava ter adquirido. Percebi que, em adulto, continuarei a ter períodos críticos e terei de aprender a lidar com eles.

Ao longo da minha vida a música sempre foi o meu escape. O fado é rejeitado por muitos pela associação à dor e tristeza mas o fado também é resistência. Em momentos de crise, na minha intimidade, sempre tive como princípio norteador alguma expressão artística. Desta vez, foi “Nossa Senhora das Dores”, a belíssima canção de Ana Moura do último disco. São vários os versos que me vão mostrando novos caminhos, como este:

Nossa senhora do fado
Só quero cantar pra ti
Se o fado é meu pecado
Bendita quando nasci

É uma canção feita de vulnerabilidade, resistência, mas também muita fé: em Deus, na cultura, no amor, na diversidade. Isto, claro, na minha interpretação.

Na emancipação da comunidade de pessoas com deficiência falamos pouco sobre a dor e como a deficiência está, muitas vezes, associada à dor. Queremos ombrear com a luta feminista, racial, LGBTQ ou com a liberdade religiosa, mas não assumimos que muitos desses grupos não lidam diariamente com a vulnerabilidade física dos seus corpos. A opressão não é apenas exterior ou emocional, também é interior e física.

Viver com dor, resistir-lhe, enfraquece-nos. Torna-nos mais vulneráveis a pressões externas, fragiliza o sentido de comunidade. Se temos dores, quando olhamos para outros pares com deficiência, muitas vezes rejeitamo-los porque nos recordam a nossa dor. Já fui essa pessoa, orgulho-me de já não a ser. Falo com dezenas de pessoas com deficiência sobre as suas vidas e, mais ainda, tenho amigos com deficiência.

Apelo à comunidade para que assuma mais a sua vulnerabilidade, sem medos, condenando ataques gratuitos, mas sendo mais plenos na aceitação de quem somos. Só através da aceitação vamos conquistar aquilo que tanto reivindicamos.

A dor é rejeitada pela sociedade, não apenas pelas pessoas com deficiência. Afastamo-nos de quem sofre, temos pena, colocamos pensos rápidos sem curar feridas. Quem sofre também se afasta de si próprio. Tentamos remediar a dor quando não há nada a remediar - temos de viver com a dor, estar com ela e aprender. É uma condição inerente à vida. Podemos criar bons momentos que equilibram a balança, mais que isso, podemos multiplicá-los, e, aí, teremos felicidade.

A discriminação é uma forma de infligir a nossa dor no outro. Talvez por isso tantas vezes, nós, pessoas com deficiência, sejamos percecionados como “revoltados”. Não somos - demonstramos cansaço perante tanta impunidade, paternalismo e condescendência.

Temos a lei 46/2006 que proíbe e pune a discriminação em razão de deficiência,. Em 2021, no relatório do Instituto Nacional para a Reabilitação, totalizam-se 1144 queixas de discriminação (3 por dia). São apenas as queixas da administração pública central, imaginem quantas ficam a cargo de câmaras municipais e outras entidades reguladoras (como a ASAE). Se lerem este relatório até ao fim, vão encontrar as páginas com as contraordenações em branco.

Onde estão as coimas? Onde está o reconhecimento dos direitos da comunidade? Isto é perpetuar a dor - por isso misturo a vulnerabilidade pessoal da comunidade com a necessidade de reforço de políticas públicas. A medicina e cuidados de saúde são ferramentas essenciais para a gestão da dor mas é importante compreendermos, enquanto sociedade, que a justiça também pode estancar ou prevenir muita dor.

Tenho 29 anos e dezenas de episódios de discriminação, nomeadamente em espetáculos. Tenho sentido o prazer conspurcado pela dor. Recentemente, num concerto para o qual estava muito expectante, ia finalmente ouvir “Nossa Senhora das Dores” ao vivo, fui levado para um lugar sem visibilidade, porque era o que sobrava na sala lotada (algo que não é da responsabilidade dos artistas, alheios a este tipo de decisões, mas sim das salas e promotores).

Irritou-me, mas não reivindiquei. A minha acompanhante viu que estava a colocar a minha perna em risco na posição em que estava sentado para ter visibilidade de palco. Procurou um assistente de sala, explicou a situação, e essa pessoa teve a sensibilidade de nos colocar confortavelmente noutros lugares. Fiquei-lhe verdadeiramente grato, mas gostava que não tivesse sido necessário começar a ter dores para resolver uma situação de base liminarmente errada.

Acredito que a dor é o maior flagelo da humanidade. É aquilo que nos separa e aquilo que nos une. A verdade é que não faz sentido que continue a separar-nos - assim consigamos reconhecer a vulnerabilidade com que todos vivemos. Ninguém está isento de dor. Reconhecê-la, até em quem julgamos ser mais privilegiado, é fundamental.

Voltando a “Nossa Senhora das Dores”, ouvimos:

Nossa Senhora das Dores
De prata tem sete espadas
São sete estrelas na noite
Brilhando na madrugada

As espadas são uma inevitabilidade da vida, mas a beleza que existe no brilho da madrugada também.


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