Coisas que só um jurista “percebe”: coima sem disciplina
Há casos que são de tal forma difíceis de explicar aos não juristas (a qualquer um, na verdade) que obrigam os juristas a pensar se o problema não estará na regra jurídica
Advogado
Há casos que são de tal forma difíceis de explicar aos não juristas (a qualquer um, na verdade) que obrigam os juristas a pensar se o problema não estará na regra jurídica
Este título tem tudo para correr mal, uma vez que pode ser interpretado de várias maneiras. Mas eu explico. Quando estamos com desconfianças de saúde e, não sendo da área, nos multiplicamos em pesquisas online, ainda que encontremos artigos rigorosos e científicos, falta-nos contexto, sensibilidade, perceção. E das mesmas fontes retiramos conclusões muitas vezes absurdas. Porque há coisas que só os profissionais de saúde ou os investigadores conseguem perceber, precisamente porque as inserem no seu contexto (de conhecimento e discurso).
No Direito passa-se o mesmo, mas a circunstância de se basear muito na palavra, na lógica e na experiência de vida cria a falsa sensação de que não é preciso mais contexto para se tirar uma conclusão igualmente amadurecida.
Ora, não é nessa tela que vou pintar as cores deste artigo. A minha referência é outra quando escolho o título: há casos que são de tal forma difíceis de explicar aos não juristas (a qualquer um, na verdade) que obrigam os juristas a pensar se o problema não estará na regra jurídica. Pode ter-se criado uma disfunção tal entre o direito e a perceção primária da sociedade que aquele não reflete a perceção amadurecida que a sociedade teria. E o Direito mais não é do que o estabelecimento das regras que a comunidade – na lógica democrática – quer e pede aos seus representantes que vigorem.
E do que falo? O que me custa explicar? Não é fácil chegar ao termo de uma investigação interna e dizer a um empregador que o seu trabalhador até terá violado regras de zelo profissional, até terá atuado de forma a que o mesmo e a entidade patronal possam ter de assumir pesadas responsabilidades contraordenacionais (desde coimas de centenas de milhares de euros a inibições de atividade), mas que não há como avançar com processo disciplinar contra ele.
O problema surge quando nos confrontamos com o artigo 329.º, n.º 1, do Código do Trabalho: «[o] direito de exercer o poder disciplinar prescreve um ano após a prática da infracção, ou no prazo de prescrição da lei penal se o facto constituir igualmente crime» [sic] (no mesmo sentido, veja-se o artigo 178.º, n.º 1, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas).
Ora, há casos (muito casos) em que se descobre que terão sido violadas determinadas regras do sector de atividade da empresa (regulação bancária, ambiental, entre muitas outras), mas não há indícios da prática de crime. Quando é assim, o prazo de prescrição para o exercício do poder disciplinar é de um ano. E é aí que os administradores ou gerentes ficam baralhados.
É certo que, em tese, pelos atos dos trabalhadores, a empresa não será responsável contraordenacionalmente se os mesmo agirem contra ordens ou instruções expressas da “pessoa coletiva”. Mas também é verdade que os tribunais não se têm contentado com a existência de regras internas estritas, presumindo, em jeito de responsabilidade objetiva (descodificando necessariamente com falta de rigor: aquela que se tem por existir e não por fazer ou não fazer), que a empresa poderia ter feito mais para evitar a infração.
Assim, como não é possível controlar tudo o tempo todo (sob pena de mais valer fazer tudo sozinho), o melhor que se poderia conseguir seria dar fortes avisos à navegação ao infrator e ao resto da empresa. O que se faz, também, através da efetiva responsabilização disciplinar de quem põe a entidade patronal na mira sancionatória do regulador.
Simplesmente, se se verificar que a violação de regras ocorreu há mais de um ano, ainda que corresponda a uma contraordenação, já não se consegue responsabilizar disciplinarmente o trabalhador infrator. E fica a sensação (profundamente errada) de que a empresa, quando descobre, não retira quaisquer consequências da violação das regras a que está sujeita na sua atividade. Sendo certo, ainda, que, nalguns casos, terá de responder sozinha em processo de contraordenação, já que nem sempre é feita a imputação aos indivíduos que materialmente infringiram.
Talvez o mal esteja na lei e não na reação epidérmica dos responsáveis das empresas, que não percebem por que razão já não podem avançar com o processo disciplinar. Melhor seria uma regra que resolvesse estas disfunções, designadamente passando a prever que o direito de exercer o poder disciplinar prescreve um ano após a prática da infração, ou, se o facto constituir igualmente crime ou concorrer para a responsabilidade contraordenacional do trabalhador ou do empregador, no prazo de prescrição da lei penal ou da lei contraordenacional.
É um debate que merece, pelo menos, ser levado ao poder legislativo.
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