Macron foi à China defender os interesses franceses, que confunde com o interesse europeu. Coisa, evidentemente, que mais nenhum Chefe de Estado ou de governo europeu faz. Mas esse é só um dos problemas desta viagem. O outro é a leitura que Emmanuel Macron faz da política internacional e do seu papel pessoal nesse universo.
No regresso de Pequim a Paris, Macron deu uma entrevista que causou escândalo. Disse que a Europa não tem de seguir os Estados Unidos, que tem de ter autonomia estratégica e – é aqui que a coisa se complica - não deve ficar prisioneira da crescente lógica de blocos e deve ser um terceiro polo da política internacional, a par da China e da América. Por mais vontade que se tenha de interpretar estas palavras como a afirmação da especificidade dos interesses europeus, elas são mais que isso. E diferente.
Com o Presidente Macron, voaram para Pequim cerca de cinquenta empresários. No meio das notícias sobre o que disse, não quis dizer ou deixou de dizer, esse detalhe passou quase despercebido. Não devia.
Segundo o jornal francês Le Figaro, entre os 36 negócios assinados por executivos franceses e empresas chinesas há tecnologia energética nuclear (EDF), aeronáutica (Airbus), dessalinização de água do mar (Suez), cosmética (L’Oréal) e 15 novas autorizações para a exportação de carne de porco. Esta parte da viagem é fundamental para perceber a outra, a das declarações políticas e da sua interpretação.
Macron e a França sabem que a primeira importância económica da China é o seu enorme mercado. Tal como a Europa, que usa os seus mais de 400 milhões de consumidores prósperos como argumento de política internacional, Pequim faz cada vez mais o mesmo. É o consumo da sua classe média (por menor que seja, sempre enorme e crescente) que é verdadeiramente importante e de enorme valor para muitas empresas europeias e ocidentais.
Por mais que no futuro se mudem as fábricas da China para o Vietnam ou para Marrocos, não será em Rabat ou em Ho Chi Min que se vão vender dezenas de aviões, litros de cosméticos ou toneladas de porco francês nos próximos anos. E também não será nos Estados Unidos que, de resto, estão crescentemente protecionistas, inclusivamente contra os europeus.
Do lado da China, essa importância também é percebida. E embora possa ser uma vulnerabilidade – a sua dependência de terceiros – Xi Jinping tenta que seja uma força. Para compreender o papel que Pequim desempenhou recentemente na suposta aproximação entre o Irão e a Arábia Saudita é preciso recordar duas coisas: uma, que a Europa e os Estados Unidos anunciam a quem quer ouvir que pretendem reduzir o consumo de petróleo e que isso é um problema para quem vive de o exportar; outra, que a China está longe de fazer a sua transição energética para as renováveis e que por longos anos vai continuar a precisar de importar cada vez mais energia. Isso, evidentemente, torna Pequim muito mais interessante do que Washington ou Bruxelas para os países exportadores de petróleo.
Macron compreende esta linguagem. A verdadeira autonomia estratégica europeia de que tanto fala é, além do mais, comercial. Macron quer produzir europeu e vender a Pequim. E para isso está disponível para se distanciar, e à Europa, dos Estados Unidos e para combater o afastamento europeu de Pequim. Por oportunidade e convicção. E essa é a segunda parte do problema desta viagem à China.
Emmanuel Macron levou Ursula Von der Leyen consigo a Pequim. A diferença de discursos e de tratamento que receberam foi notória. Dias antes de partir, a presidente da Comissão Europeia resumiu a sua visão sobre o futuro das relações da Europa com a China: Pequim está a mudar a sua atitude e ambições internacionais e a União Europeia tem de acompanhar essa mudança.
Não se trata de fazer uma separação completa, como dizem os Estados Unidos, mas trata-se de reduzir o risco da integração económica e da dependência, em nome de uma ideia de autonomia e segurança europeias. A associação empresarial alemã, numa viragem recente e surpreendente, concorda com Von der Leyen. Macron discorda.
O pano de fundo desta discussão é complexo. Cortar completamente com a China não é necessário, útil ou benéfico. Não depender, ou depender o menos possível, é. A autonomia estratégica da Europa depende da capacidade de os europeus decidirem o seu futuro e serem responsáveis pela sua segurança sem absolutos constrangimentos por terceiros.
Para Macron, como normalmente para a França, a autonomia estratégica europeia (leia-se francesa) é ser diferente dos EUA. Esta idiossincrasia francesa, que já era problemática para os europeus de centro e de leste, que sabem que a história da sua libertação se fez com Washington, Londres, o Vaticano e Berlim e não tanto com Paris, tornou-se ainda mais difícil depois da invasão russa da Ucrânia. A noção francesa de poder e influência não passa por defender os interesses ou preocupações destes países. Passa por as considerar um empecilho. (Imagina-se a vontade que eles têm de ver a política externa europeia decidida por maioria. É semelhante ao arrependimento dos australianos por terem trocado os submarinos franceses por anglo-americanos.)
Há, finalmente, ainda outro problema. Macron está convencido de que é um ator internacional persuasivo. Mesmo que nunca tenha tido resultados que o confirmem. Daí que, a menos que em segredo tenha conseguido avançar posições, por enquanto a China não se moveu um milímetro em relação à Rússia e à Ucrânia, e não hesitou em provocar Taiwan assim que o Presidente francês levantou voo.
Macron não influenciou Xi Jinping, mas vendeu-lhe aviões, cosméticos, nuclear e porco. Isso importa-lhe mais.
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