A guerra na Ucrânia já ensinou três coisas sobre a segurança europeia (entre outras): que os Estados Unidos da América e a Europa têm interesses comuns fortes, mais fortes do que por momentos pareceu, que para os europeus a segurança implica a NATO (e os americanos), e que se Trump ainda fosse Presidente, ou voltasse a ser, esta guerra seria um problema muito maior. Daqui importa tirar lições.
O futuro da segurança europeia tem vários problemas. Trump, ou outro Presidente que diga, como Trump disse, que a Europa é tão adversária quanto a China ou a Rússia, pode voltar. França e Alemanha não são garantia suficiente de segurança europeia, como se tem visto pela forma errática com que Macron tem levado a posição francesa neste tema e a forma arrastada como Scholz tem andado nesta questão. E pela decisão de países como a Suécia e a Finlândia de aderir à NATO quando podiam ter preferido puxar por uma segurança e defesa mais europeias.
Isto tem implicações. Não só a NATO se deve manter como parte estrutural da segurança europeia, mas também é necessário garantir que a relação transatlântica resiste a outra presidência destrutiva. Assim como as instituições americanas sobreviveram a Trump. Como é que isso se faz? Cooperando mais no principal interesse comum: a China. Relacionando-se economicamente com competição mas sem serem adversários. E reforçando laços institucionais à prova das volatilidades políticas. Tudo coisas bastante mais fáceis de identificar e reconhecer do que de fazer.
As cenas mais recentes da novela Trump são pouco edificantes mas não são completamente irrelevantes para a análise política dos europeus. O Presidente que um dia comparou a Europa à Rússia e à China enquanto adversários pode voltar. Ou alguém como ele.
A Guerra Fria foi, sobretudo, um confronto e uma competição entre dois sistemas políticos com uma ameaça militar latente e uma diferença em resultados económicos significativa do primeiro ao último dia.
Entre 1949 e 1989/90 os dois lados, mas sobretudo o lado de cá, tinham consciência de que estava em causa qual o modelo político que seria vencedor, que marcaria o mundo. As vantagens da vitória do modelo ocidental, por maiores críticas que se possam fazer, hoje são óbvias (para a maioria, pelo menos). À época não eram tão quase unânimes. Por isso o combate ideológico era tão importante. Se o Ocidente desacreditasse no seu modelo, a Guerra Fria teria acabado de outra forma, com outros vencedores e vencidos. E com outro modelo político a servir de referência global.
É certo que no tempo da Guerra Fria, os americanos não tiveram só democracias como aliados. Pelo contrário. Houve regimes pouco recomendáveis que foram úteis aos interesses ocidentais porque partilhavam o mesmo adversário. Mas só uma enorme ingenuidade sobre os negócios do mundo pode ver nisso um desmentido da natureza do conflito.
O que se passa agora, porem, é substancialmente diferente. Para lá de tudo o que incomoda em Trump, do estilo ao tom, o verdadeiro problema de fundo é que Donald Trump não é um ocidentalista, não é um crente nas virtudes das democracias liberais ocidentais, não aplaudiria a maioria dos discursos de Reagan, Thatcher ou George Bush e as suas amizades com autoritários ou iliberais não são puramente táticas ou oportunistas, são convicção. O que seria um problema menor (por assim dizer) se Trump fosse um episódio. Mas não é.
A isto acresce um problema novo, ou pelo menos visto a uma nova luz. A China foi sendo percebida por muitos ocidentais como um desafio económico, um competidor que às vezes até teria mais sucesso. A dúvida que suscitava em muitos era se o modelo autoritário e centralista poderia ter melhores resultados económicos. E isso já era problemático. Mas no meio dessa análise perdeu-se com frequência a vista do essencial. Como se percebeu quando Xi Jinping renovou os profundos laços de amizade com a Rússia e com Putin, a China não é apenas um competidor económico. O que verdadeiramente conta é que Pequim é um modelo alternativo que quer, sem sequer o esconder, redesenhar o mundo.
No seguimento da visita de Xi Jinping a Putin, a China declarou que ambos “compartilham a visão de que este relacionamento foi muito além do âmbito bilateral e adquiriu importância crítica para o cenário global e o futuro da humanidade”. Moscovo respondeu: “estamos a trabalhar em solidariedade na formação de uma ordem mundial multipolar mais justa e democrática” e continuando a hipocrisia ainda disse que essa ordem “se deve basear no papel central da ONU, do Conselho de Segurança, do Direito Internacional e nos propósitos e princípios da Carta da ONU”.
Hipocrisias à parte, há aqui muita sinceridade. A China quer reorganizar o mundo e quer ter poder para o fazer. E isso implica poder económico, liderança tecnológica, aliados e alguns subordinados. A Rússia quer que a China lhe permita as suas ambições na sua geografia europeia.
Isto tudo significa que europeus e americanos precisam de restaurar as causas da sua aliança: não é meramente tática ou comercial, a ideia de democracia liberal é uma causa. Trump não percebe isso porque não acredita. Esse é o primeiro problema. O segundo é garantir que a relação sobrevive a presidências erráticas (desde que os próprios EUA, como os conhecemos, sobrevivam). O terceiro é fazermos a nossa parte em termos de segurança sem perder de vista a questão de fundo: o modelo político e o aliado fundamental. E não passarmos para um protecionismo anticapitalista que confunde qualquer comércio com soberania ou independência. Saber isso tudo é um bom começo, mas não é fácil de concretizar.
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