Numa altura em que o Credit Suisse é engolido, a China oficializou a sua OPA na geopolítica e comprou o regime de Vladimir Putin. Como o próprio contexto sugeria, a operação até ao momento em que escrevo não teve qualquer custo para Xi Jinping e dificilmente virá a ter algum. Tanto as palavras do presidente chinês em Moscovo como as do último líder russo estão secundadas pelo “plano de paz chinês” que foi ambíguo ou até vazio o suficiente para tornar claras as linhas da nova ordem mundial pretendida por ambos. O EUA e o modelo internacional que representam são o inimigo declarado e pretende-se agora que as soberanias nacionais sejam substituídas por esferas de influência.
Hoje, Xi Jinping, perante o descalabro, os erros de cálculo do presidente russo, a impossibilidade de conquistar Kiev e depor assim o governo ucraniano no último ano, procurará acentuar a sua defesa de paz na Ucrânia com base na transferência de alguns daqueles lugares que Putin visitou há poucos dias e que estão dominados por tropas russas. Donbass, Mariupol e a manutenção da Crimeia, por exemplo. A relevância do peso da economia e indústria da segunda maior potência global faz com que consiga sinalizar uma via diplomática bastante esvaziada e russófila, apresentando-a com a adjetivação que conhecemos. Qual a moeda de troca pretendida? Nenhuma, com a exceção de um pormenor que faz toda a diferença: o facto de amanhã tudo ficar facilitado para que o regime chinês de Xi Jinping - bastante mais sinuoso, estratégico, economicamente e politicamente poderoso do que o russo - faça parecido em Taiwan, só que com o menor alarido e militarização possível. As autocracias que a China representa e a ordem mundial que desejam assim obrigam.
Como se chegou até aqui (?), perguntarão alguns dos mais desatentos. A resposta não é linear, mas obedece em quase tudo à mesma matriz que possibilitou a Vladimir Putin fazer o que fez em 2014 na Crimeia, fortalecendo o seu poder para manipular dois anos depois as eleições americanas e sobrevoar a Europa como queria.
Veja-se: apesar da caracterização e as intenções do regime chinês na última década, tudo se conjugou e alinhou, até no multilateralismo das organizações internacionais, para que o país se fortalecesse de forma estratosférica. A globalização deu mundo e fez crescer a economia da China sem paralelo, mas não produziu um regime e país que se abrisse internamente a esse mesmo universo.
Da mesma forma que a invasão de Putin teria sido diferente em fevereiro de 2022 se o presidente americano fosse outro e a União Europeia não surpreendesse, é provável que até há pouco menos de dois anos esta vontade da China fosse recebida pela frágil e politicamente sonâmbula União como uma opção viável. Após a pressão à Ucrânia e a estocada final nos apoios, decretar-se-ia assim e para bom entendedor a oficialização do fim da ordem mundial liberal e democrática para dar lugar a tudo aquilo que as autocracias e os inimigos internos da Europa mais desejam.
Atenção: mesmo que seja possível regressarmos a isso, não estamos aí.
É que apesar das incongruências da França e Alemanha neste capítulo, praticamente todos os países da União Europeia dependem hoje bastante menos do investimento do gigante asiático. Portugal é um bom exemplo. Até há poucos anos era o país da União Europeia com mais peso do investimento chinês na economia e aos poucos começou-se a esvaziar.
Seja como for, os sinais que chegam de Moscovo indiciam que a China provavelmente passará a comandar mais de perto e cautelosamente todos os movimentos da Rússia, sem que isso signifique qualquer proposta de paz minimamente justa ou em nome da soberania. Não haja ilusões.
A partir de aqui, o que se passará no terreno entre avanços, recuos ou uma eventual contra - ofensiva decisiva continuará a ditar o peso futuro na mesa de negociações. Oxalá venha rápido e sob a forma de uma paz a sério.
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