Opinião

Conflitos congelados: o que são e que perigo representam para nós?

Conflitos congelados: o que são e que perigo representam para nós?

Daniela Nunes

Doutoranda do Instituto de Estudos Políticos da UCP

O desabar do bloco soviético e o colapso da arquitetura ideológica e territorial da antiga URSS, em 1989-91, conduziram a um aumento exponencial dos nacionalismos e de conflitos étnicos em regiões outrora ligadas pela força de um regime e de uma ideologia. Volvidos mais de 30 anos, estes conflitos permanecem congelados na História

O fim da Guerra Fria e o consequente remapeamento da Europa de Leste ditaram o fim de uma política de russificação em todo o antigo território da União Soviética, hoje repleto de um conjunto de novas fronteiras, hinos e bandeiras nacionais. Esta política está na base de uma tentativa histórica de homogeneização social e cultural de um povo soviético, sendo o seu desígnio final o de aproximar milhões de soviéticos aos padrões tipicamente russos. Durante várias décadas, esta prática implicou a abolição de tradições e costumes próprios em cada uma das repúblicas socialistas soviéticas, assim como a própria substituição do ensino das suas línguas nacionais pelo ensino da língua russa nas escolas, por exemplo. A disseminação forçada destes padrões e caraterísticas russos teve duas consequências simultâneas, embora opostas: por um lado, contribuiu indubitavelmente para a formação de comunidades russófonas em quase todas as repúblicas que não a russa; por outro, contribuiu igualmente para o crescimento de sentimentos nacionalistas nestas repúblicas, obrigadas a anular as suas raízes singulares, substituindo-as pelas russas.

Com o advento da perestroika e da glasnost na segunda metade da década de 1980, esta tendência começou finalmente a ganhar contornos de um retrocesso gradual e ligeiro. Além disso, o ímpeto da revolução nos países-satélite da URSS – Polónia, Hungria, Checoslováquia, RDA, Bulgária e Roménia – também fomentou em grande medida o processo de ebulição em que os nacionalismos dentro da União Soviética começaram a entrar neste período. É sobretudo a partir do final da década de 1980 e início dos anos 1990 que começam a emergir aqueles que ficaram conhecidos na última década do século, e até aos nossos dias, como os conflitos congelados do pós-Guerra Fria. Estes conflitos opõem essencialmente as nações e comunidades tornadas independentes aquando da implosão da URSS e os movimentos separatistas russos que há 30 anos se recusam à integração nestas comunidades. O caso que tem motivado maior investigação pelas razões que são evidentes é o da Ucrânia, onde as províncias separatistas de Donestk e Lugansk serviram como gatilho para uma autoproclamada Operação Militar Especial – com todas as aspas que lhe são devidas. Mas existem outros casos: o Nagorno-Karabakh, no Azerbaijão; a Ossétia do Sul e a Abcásia, na Geórgia; a Transnístria, na Moldávia (ver mapa ilustrativo).

O que é comum a todos estes países, incluindo a Ucrânia, é a sua ligação histórica e quase umbilical a Moscovo – ligação esta somente quebrada a partir da introdução do projeto reformista de Gorbatchov na URSS (1985-1991) e consequente queda deste império de nacionalidades. Desde a sua chegada ao poder, Vladimir Putin tem revelado preocupação em manter de alguma maneira estas regiões sob a sua influência, atribuindo-lhes, por isso, um estatuto especial face ao de outros países e regiões. Na narrativa Putinista, estes países – uma espécie de cordão sanitário de antigas repúblicas soviéticas, depois de 1991 tornadas independentes – ocupam a posição de “estrangeiro próximo”, para usar a terminologia russa. Sob esta ótica, o Kremlin tem vindo a sustentar os movimentos separatistas nestes países que reclamam a sua pertença cultural à “mãe-Rússia” e que motivam a inquietação do Ocidente acerca das próximas investidas do regime russo.

Depois da invasão da Ucrânia pelas forças russas, há razões para prestar particular atenção aos outros conflitos congelados e às movimentações russas nesses territórios, onde imperam a corrupção, o clientelismo e o crime organizado. Nos últimos dias, tem-se assistido a um reacendimento da tensão entre a Rússia e a Geórgia, bem como entre a Rússia e a Moldávia. No primeiro caso, o chumbo de um projeto-lei considerado conforme a uma lei aprovada na Rússia em 2012 para conter a oposição estará na origem de várias manifestações que juntaram milhares de georgianos pró-Ocidente e pró-União Europeia em Tbilissi. A proposta de legislação inspirada nos moldes russos definiria que as organizações e os media que recebessem 20% ou mais financiamento vindo do exterior fossem classificados como “agentes estrangeiros”. Uma lei deste tipo mais não serve do que para policiar estas organizações e os meios de comunicação, naquilo a que os manifestantes georgianos consideraram ser uma tentativa clara de supressão de uma liberdade fundamental.

Recorde-se, apesar de tudo, que o chumbo do projeto-lei só acontece depois de uma segunda votação, já que fora aprovado numa primeira, gerando forte indignação social e o princípio dos protestos por parte daqueles que não querem ver crescer entraves à aproximação da Geórgia às instituições e modelos Ocidentais. No segundo caso, o aumento da tensão dever-se-á àquele que os separatistas pró-russos na Transnístria dizem ter sido um ataque terrorista de origem ucraniana, mas que conseguiram impedir. O Primeiro-Ministro moldavo, Dorin Recean, não confirmou a tentativa de ataque, e Kiev rejeitou quaisquer responsabilidades, acrescentando que esta seria apenas uma manobra russa para provocar o caos em Chisinau, capital da Moldávia. Em ambos os casos, porém, o Kremlin encontra sempre o argumento ideal para conseguir agitar as opiniões públicas e fomentar campanhas de desinformação: este argumento prende-se com a proteção das comunidades russófonas presentes nestas regiões. Perante esta retórica, a questão que se impõe é: serão a Geórgia e a Moldávia as próximas Ucrânia(s)?

Fonte: The Economist

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