Ninguém deve ter a ilusão de que consegue entender com rigor o que se passa no cérebro e no coração do Presidente da República. Sobretudo quando ele atua como o ventríloquo de Marcelo Rebelo de Sousa. Ou seja, quase sempre.
Creio mesmo que nem o próprio Presidente o sabe bem.
No entanto, por vezes, dão-nos pistas os sinais que se repetem e que, embora distantes uns dos outros, se podem apreciar em conjunto.
Entre essas pistas está a entrevista dada à RTP, há dias e quando fez 7 anos de mandato.
Como nas obras culturais, é possível que o artista – neste caso Marcelo – não tenha uma rigorosa noção do que significa a sua obra, que é a intervenção constante no sistema político, económico e social.
Vamos, pois, tentar entrar neste complexo e fascinante território. E há que entrar, pois ele condiciona como ninguém a evolução política.
MARCELO: AS TRÊS PERGUNTAS ESSENCIAIS
Comecemos por algumas perguntas:
Como com todos os políticos, aquilo que mais importa a Marcelo é a sua imagem histórica. Aqui há meses um amigo comum do Presidente e meu considerou, bem-humorado e concordando comigo, que eu fizera uma “pergunta assassina”: “qual é a pegada histórica que Marcelo quer deixar após 10 anos em Belém?”
Ainda não há resposta para isto e o tempo começa a escassear…
Em segundo lugar, ele gosta ou não do PSD?
Penso que Marcelo tem um problema real com a sua família política, em que alterna amor/ódio.
De um lado, gostaria que o PSD tenha sucesso, mas de outro não admite que o tenha a não ser seguindo-o acriticamente. Como disse ou fez dizer há tempos, “o PSD devia colar-se mais ao Presidente”.
E, em terceiro lugar, queria ele a maioria absoluta do PS há um ano?
Creio que não, que foi tudo o que ele não queria nem imaginara possível, sequer nos seus momentos mais perversos, que os tem, ou nos períodos menos inteligentes, que também lhe acontecem ainda que mais raramente…
Tudo vai resultar, segundo me parece, destas três respostas.
MARCELO: AS TRÊS PERCEÇÕES
Depois dos factos, algumas perceções:
A primeira é que o Presidente se adaptou à realidade da maioria absoluta, mas a sua aparente recente desagregação, acentuada nas sondagens, gerou-lhe medo.
Realmente, uma crise política com eleições antecipadas, após o que o País ficasse ingovernável, será hoje pior do seu ponto de vista do que aturar Costa até 2026.
A segunda perceção é que Marcelo compreensivelmente nunca perdoou nem perdoará a Passos Coelho que, de forma aliás explícita, o não quisesse como candidato presidencial apoiado pelo PSD.
A terceira é que Marcelo sabe que o seu antigo bloco social de apoio (ao menos nas elites e nos atores políticos não socialistas) já se não revê nele e ainda menos se reverá em 2026 com mais 3 anos a tudo fazer (chamem-lhe defesa da estabilidade ou o que quiserem) para aguentar o governo de António Costa.
A conclusão parece-me óbvia: tenha ou não consciência disso (eu acho que tem, mas ninguém pode estar seguro), Marcelo acha que não pode confiar na Direita para que o seu legado seja assegurado.
MARCELO: OS SINAIS
E há sinais antigos nesse sentido.
Sempre que o PSD de Rui Rio parecia começar a surgir com algum potencial (admite-se que foi muito raro…), o comentador Marcelo se encarregava de lhe tirar o tapete, em regra apoiando o Governo naquilo que do lado dos “laranjinhas” se criticava.
Mais recentemente, atirou-se como gato a bofe a Moedas e a Montenegro sobre o tema da imigração. Moedas respondeu-lhe à bruta (fez bem, mas não lhe será perdoado) e Montenegro preferiu assobiar para o lado, embalado nos muitos telefonemas que parece que recebe de Belém.
Mas esta contenção não lhe serviu de nada. Dias depois, numas das suas várias intervenções diárias, Marcelo resolveu promover Passos Coelho e fazer saber que acha ser ambição dele voltar a S. Bento.
Assim criou um facto político: Passos Coelho, sem fazer nada por isso, passou a ocupar o espaço mediático tirando oxigénio a Montenegro.
Ou seja, tranquila e estrategicamente, Marcelo tirou o tapete ao líder do PSD (apesar da lealdade comovente que este lhe vem mostrando há quase um ano) e passou a mensagem de que ele não vai sobreviver às eleições europeias.
E isso evidentemente vai influenciar muito o resultado nessas eleições daqui a um ano, no sentido de que não seja tão bom para o PSD que faça perigar a sobrevivência de Costa até 2026.
Essa é a única explicação para os elogios não sinceros a Passos Coelho.
Como já disse, Marcelo não lhe perdoa, não gosta dele (vejam o que destilou para o Expresso logo a seguir ao facto político: “é um crónico pessimista, falta-lhe trazer esperança”), não quer que tenha nenhum sucesso, mas é-lhe útil para enfraquecer Montenegro.
As coisas são os que são, como poderia ter dito um filósofo pouco original.
MARCELO: O COMENTADOR-MOR DO REINO
É neste contexto que surgiu a entrevista à RTP a comemorar 7 anos na Presidência.
Foi uma magnífica hora de comentário político, muito inteligente, mas em que não se viu um desígnio, uma linha estratégica, uma visão para o futuro. Nada de novo quanto a isso, portanto.
A leitura quase unânime nos media é que foi a mais dura intervenção de sempre contra o Governo.
À superfície, nos adjetivos e nas frases fortes que como analista político usou, pareceu isso. E acredito que queria que parecesse.
Mas não se iludam:
No tema nesta conjuntura mais complicado para António Costa (o pacote da Habitação) o Comentador-mor do Reino arranjou maneira – e foi tudo o que disse - de comparar a proposta do Governo com a do PSD e concluir que ambas têm problemas de praticabilidade (no caso do PSD, calcule-se, por encarregar a Autoridade Tributária da “identificação de imóveis públicos e privados devolutos … e aplicação do regime de incentivos à colocação em mercado”).
Se isso não é pôr a mão por baixo do Governo…
E a mensagem principal na entrevista foi que só haverá alternativa que ele pondere, se e quando além da Direita ter mais de 45% dos votos e haja uma grande diferença entre o PSD e a soma do IL, Chega e CDS, seguramente muito mais do dobro.
Isso significa que após as Eleições Europeias, mesmo com uma “débacle” do PS, não haverá eleições legislativas (mas à cautela convém enfraquecer Montenegro…).
Claro que Marcelo não tem pulsão suicida e ainda menos, se possível, por mera solidariedade: se Costa se suicidar politicamente, Marcelo lá estará para espetar uma faca e explicar que sempre soube que isso aconteceria e que muito fizera para tal fim.
Mas se isso não acontecer, o PS pode dormir descansado por mais 3 anos.
SUPERMERCADOS: A NOVA RÚSSIA NA GUERRA DA INFLAÇÃO
A luta política contra a inflação – e em especial quanto aos produtos alimentares – está ao rubro. E a Rússia desta guerra chama-se “Supermercados”.
No fundo, eles são para os consumidores a cortina de fumo ou encenação que o arrendamento forçado é para quem quer arrendar e não consegue.
O foco nos Supermercados faz sentido politicamente: são poucos, os 8 maiores têm no retalho quota de mercado de 83%, é neles que quase todos nos abastecemos.
O Governo e a ASAE falaram de margens em certos produtos que chegam a 50%, o que faz manchetes, e depois explicam que são margens brutas e não líquidas, o que faz toda a diferença.
Por isso setores vários – e não só BE, PCP e CHEGA que estão cada vez mais parecidos no que interessa – propõem que se deve regular os preços, definir margens de lucro máximo, no fundo reforçar a Intervenção do Estado na Economia em mais este setor. Até a Ministra da Agricultura saiu da sua irrelevância para o defender.
Contra isso só li Ricardo Arroja, que ontem no Público fala dos riscos e ilusões do “controlo dos preços”.
A nível dos “media”, o ECO é o único que passa a informação dos “Russos”, o que torna essencial lê-lo para quem queira perceber. E é perentório: “distribuidores alimentares não aumentaram as margens de lucro”.
Mais em concreto, o ECO afirma que no Continente e Pingo Doce (quota de mercado conjunta de 49,3% em 2022) “nem as margens brutas nem as margens [líquidas] estão a aumentar”.
E refere que “de todos os intervenientes na cadeia de valor, o Estado foi o único que não fez qualquer alteração na sua margem de lucro: não baixou nem reviu o IVA sobre os bens alimentares básicos, como fez Espanha, nem parece ter intenção de o fazer”.
Nós, os pobres mortais, ficamos confusos e podemos - sem ter disso noção - estar a pressionar com base em informação insuficiente para soluções de que seremos afinal as vítimas.
Moral da história: é essencial que as televisões exerçam o contraditório com aqueles que sondagens revelariam que têm a culpa das nossas aflições, para que possam ser ouvidos no mesmo prime time em que se ouve a voz dos que os atam ao pelourinho.
O ELOGIO
Ao Governo por três medidas:
- a mudança de quase todos os ministérios para a atual sede da CGD;
- o acordo com a Força Aérea para libertar espaço aéreo na Portela;
- a decisão de que até 150 000 imigrantes de países lusófonos passam a poder obter, a partir de ontem e online, “uma autorização de residência automática”.
Estão de parabéns Mariana Vieira da Silva, João Galamba e José Luís Carneiro, os ministros que coordenaram estas ações.
LER É O MELHOR REMÉDIO
Estou a ler na edição original, mas apercebi-me que já há tradução. Falo de um livro de Edward Wilson-Lee, professor na Universidade de Cambridge, que entre nós se chama “A Torre dos Segredos – Os Mundos paralelos de Camões e Damião de Goes” (Bertrand).
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