Opinião

Alargue-se a Europa

Alargue-se a Europa

Henrique Burnay

Consultor em Assuntos Europeus

A Comissão Europeia diz que é geopolítica. O presidente Macron quer que a Europa tenha autonomia estratégica. Mas o lugar que a Europa quer ou vai ter no mundo depende muito de quem pode fazer parte da UE e quem ficará de fora

No meio de uma das muitas manifestações da semana passada em Tbilisi, uma mulher enfrenta um canhão de água da polícia mantendo-se firmemente de pé com uma bandeira da União Europeia na mão. Dias depois, o governo cedeu aos manifestantes. A força daquela imagem é imensa. E o seu significado também.

Para quem não viveu os dias da queda do muro de Berlim e de tudo o que de fantástico depois aconteceu na Europa de Leste (era assim que então se chamava aos países comunistas do lado de lá da Cortina de Ferro), insistir em falar do fim da Guerra Fria pode parecer uma obsessão com o passado. Praticamente o mesmo que invocar a Revolução Francesa a todo o tempo, mas com imagens de televisão em vez de grandes quadros. Acontece que a queda do muro de Berlim e o fim da Guerra Fria foi um dos momentos, provavelmente o momento, que mais marcou a Europa nos últimos cinquenta anos. Eventualmente até ao começo desta guerra na Ucrânia. E é um importante guia de leitura da actualidade.

Na Ucrânia, o processo de aproximação ao Ocidente, à NATO e à União Europeia impôs um combate com uma Rússia brutal e decidida a travar (e depois talvez reverter) este processo. Na Geórgia, a situação está, ainda, longe de ser idêntica. Mas em ambos os casos a União Europeia desempenha um papel muito mais importante do que naquele começo dos anos 90 do século passado.

Num mundo em que havia dois modelos político-económicos alternativos, o Ocidental e o Comunista, os “europeus de leste” lutaram (sem a violência a que hoje os ucranianos estão sujeitos) para aderir ao modelo democrático liberal e capitalista ocidental, que os Estados Unidos da América representavam e lideravam. Naquele tempo, a América era a inspiração, a Europa e a NATO eram o meio. As bandeiras agitadas em manifestações eram americanas ou alemãs.

A bandeira europeia que aquela mulher segurava há dias frente as autoridades georgianas, tal como todas as referências à União Europeia e ao desejo de adesão da Ucrânia, contam a história de um tempo diferente. A Europa da União Europeia, não o Ocidente em abstracto, inspira. É um desejo, o objectivo e uma garantia. Foi isso que mudou.

Aquela mulher, os manifestantes georgianos, ou a enorme maioria dos ucranianos, querem ser da União Europeia. Certamente que pretendem vir a beneficiar dos fundos de coesão, do mercado interno e das benesses europeias. Com certeza. Mas, sobretudo, querem ser europeus da União Europeia. Querem que os seus países sejam democracias liberais europeias como as da UE (quase todas, vá. Mas essa é outra discussão).

Num mundo a reorganizar-se em blocos, onde o poder volta a importar, a força inspiradora e mobilizadora da União Europeia tem de ser tida em conta pela própria União. Não basta a Comissão Europeia dizer que é geopolítica. Ou o presidente Macron querer que a Europa tenha autonomia estratégica. O desafio é muito maior que isso. Para discutir que lugar é que a Europa quer ou vai ter no mundo, tem de se discutir quem pode entrar e quem ficará de fora. E como nos vamos relacionar com esses vizinhos.

A adesão à União Europeia não há-de ser possível para todos. Mas seria um erro que não fosse para mais nenhuns. Ou para muito poucos. Não é só pela legitimidade da sua vontade, é também pelo nosso próprio interesse. A dimensão da Europa - onde hoje há regressão demográfica e menos dinâmica económica do que em muitos lugares do mundo - conta e precisa de alargamento. E isto não pode ser visto pelos países mais ocidentais ou mais pobres como mera competição por centralidade e fundos. Está muito mais do que isso em causa.

Claro que nem todos estes países poderão (ou quererão) aderir. E é aí que a revisão da política de vizinhança e a recém-criada Comunidade Política Europeia (uma ideia de Macron) pode ser útil e importante. Até por ter britânicos e turcos, e poder juntar mais vizinhos.

Sempre que esta discussão acontece, como há trinta anos, há quem (invariavelmente alguns europeístas federalistas e a Alemanha) insista que não pode haver alargamento sem aprofundamento. Não é necessariamente verdade. Pelo menos ao ponto de exigir a revisão dos Tratados.

Como os últimos 12 anos provam, a União Europeia respondeu à crise das dívidas soberanas, à pandemia, à guerra e à dependência da Rússia com uma responsabilidade e instrumentos que não tinha mas inventou e sem mudar uma linha dos tratados. Em todos estes casos, o que fez diferença foi a convicção, de políticos e cidadãos, de que o que estava em causa justificava e pedia uma intervenção à escala europeia. Que havia risco e interesse comum.

Voltamos a Kiev, a Kherson e àquela mulher em Tbilisi. A Europa não pode, moralmente, falhar. Por eles. Mas por nós também. É muito mais importante sermos mais, do que sermos mais federados.

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