Episodicamente há opiniões críticas da arbitragem em litígios com entidades públicas. Em especial, se envolverem o Estado.
Segundo as mesmas, a arbitragem de direito público segue termos discutíveis e não há controlo do mérito das decisões. Os tribunais arbitrais funcionariam com árbitros, e não juízes, cuja designação seria revestida de obscuridade, e a sua tramitação teria, em alguns casos, “opacidade medieval”. Depois, o recurso a tribunais arbitrais resulta, em regra, mais desfavorável para as entidades públicas.
Este discurso é impressivo, mas repleto de equívocos.
A discussão sobre os méritos e deméritos da arbitragem em litígios sobre contratos públicos – essencialmente é deste tipo de litígios que se fala – é, e deve continuar a ser, regular. Mas impõe-se que se parta de pressupostos rigorosos.
A existência de tribunais arbitrais para resolução de litígios que envolvam entidades públicas não é novidade. Como mecanismo paralelo aos tribunais estaduais tem previsão constitucional e a utilização em litígios com entidades públicas tem anos. Já o Decreto-Lei n.º 48.871, de 19.2.69 (com mais de 50 anos) o permitia em contratos de empreitadas de obras públicas. E a circunstância de a função jurisdicional poder ser exercida em arbitragem não é particularidade portuguesa. A arbitragem existe noutras jurisdições, com maior ou menor amplitude, e tem um papel fundamental na captação de investimento estrangeiro.
É óbvio que os tribunais arbitrais funcionam com árbitros, e não juízes estaduais, e que a independência/imparcialidade daqueles é essencial para assegurar uma decisão legítima. Isso aplica-se em arbitragem e noutras sedes, incluindo jurisdicional. O regime da arbitragem (incluindo de Direito Público) não esqueceu tais exigências e tem meios de controlo dessas dimensões. Se necessário, com apoio dos tribunais estaduais: estes podem ser chamados, por qualquer parte (incluindo a pública), a decidir sobre a independência e/ou imparcialidade de um árbitro e determinar o seu afastamento se tais requisitos não estiverem reunidos.
De resto, o investimento no desenvolvimento, formação e divulgação de regras sobre requisitos exigíveis em arbitragem é patente, em linha com as melhores práticas, e o resultado desse investimento constitui uma referência no momento da sua aplicação pelos tribunais estaduais quando são chamados a decidir sobre a verificação desses requisitos.
Por isso, assumir que não existe controlo sobre a isenção dos árbitros que intervêm na arbitragem é errado: existe, pode ser suscitado por qualquer parte, incluindo a pública, e os tribunais estaduais têm um papel decisivo nesse domínio.
Também a ideia de secretismo e de impossibilidade de controlo das decisões arbitrais sobre contratos públicos assenta noutro equívoco. E o juízo sobre a dita “opacidade medieval” nas arbitragens ad hoc – ou seja, aquelas que decorrem fora de um centro de arbitragem institucionalizado – é, também ele, infundado e em nada contribui para o esclarecimento dos méritos ou deméritos da arbitragem.
Hoje, nos termos da lei, as decisões arbitrais em litígios com entidades públicas são, obrigatoriamente, publicadas, por via informática, em base de dados organizada pelo Ministério da Justiça. Em www.servicos.tribunais.org.pt acede-se a decisões arbitrais proferidas em sede institucionalizada ou ad hoc, incluindo o teor integral (anonimizado) e a identificação dos árbitros que intervêm nesses processos.
Paralelamente, essas decisões arbitrais só podem ser executadas – ou seja, exigido o seu cumprimento forçado, no que é função exclusiva dos tribunais estaduais – após depósito nos termos definidos em portaria, o que significa que as entidades públicas podem recusar o cumprimento de decisões arbitrais se e enquanto não for assegurada tal publicidade. Trata-se de uma medida complementar para obviar à dita opacidade.
Também o argumento de que não existe recurso das decisões arbitrais que envolvem entidades públicas é errado. A arbitragem é um meio célere de resolução de litígios e já há vários anos que a regra é a inexistência de recurso. As decisões arbitrais seriam finais. A arbitragem de direito público, mais uma vez, sem prejuízo da crítica à solução, segue outro regime. A lei prevê que das decisões arbitrais proferidas nestes litígios possa ser interposto recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, além de outros que as partes prevejam na convenção de arbitragem, pelo que não há base para a alegação de que as decisões arbitrais não podem ser questionadas.
A ideia de proibição de princípio da arbitragem em litígios que envolvam o Estado (ou entidades públicas) só se compreende se houver desconhecimento destas regras e do benefício que a arbitragem tem no contexto da administração da justiça e da obtenção de investimento estrangeiro ou se se entender que os resultados desfavoráveis que as entidades públicas possam ter na arbitragem se deve ao simples facto de a decisão de litígios caber a árbitros e não a juízes. Este é, também, um argumento avançado: nos tribunais arbitrais as entidades públicas sairiam prejudicadas.
O argumento é fácil de rebater: por um lado, é assumido sem uma avaliação do mérito da posição que essas entidades públicas têm nos supostos litígios a que as opiniões se reportam (se alguns); por outro lado, a ideia oposta, que decorre desse raciocínio, de que as entidades públicas teriam os seus interesses melhor acautelados e com melhores resultados em decisões emitidas por juízes dos tribunais estaduais, é errada e é injusta para os próprios tribunais estaduais na sugestão implícita de uma qualquer predisposição destes últimos nesse sentido.
Evidentemente, a prática arbitral tem caminho para evoluir. Terá sempre, tal como a jurisdição estadual. Mas desempenha um papel relevante na administração da justiça e esse papel sai reforçado se a discussão em torno dos seus méritos se fizer à luz dos reais contornos que a envolvem - e não de outros.
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes