Opinião

Manual para uma reorganização possível e desejável dos cuidados de saúde primários

Manual para uma reorganização possível e desejável dos cuidados de saúde primários

Gonçalo Melo

Médico de família com qualificações em Gestão

A reforma que se pretende fazer nos cuidados de saúde, e em particular nos cuidados de saúde primários, em Portugal deve ter uma perspetiva diversa da proposta. Uma visão diferente da preconizada pela atual direção executiva do Serviço Nacional de Saúde e fundamentada na evidência demonstrada, num estudo baseado nas comparações entre os vários modelos de gestão de cuidados de saúde primários no mundo desenvolvido, sugere uma nova perspetiva

Um artigo publicado no “Cambridge University Press” defende uma reorganização estrutural dos cuidados de saúde primários estruturada nos três pilares da governação, do financiamento e da gestão, assim como uma reorganização dos serviços prestados por este nível de cuidados estruturada nos dois pilares da organização de serviços e da organização relacional.

Aplicado ao nosso Serviço Nacional de Saúde, as propostas que faltam seriam as seguintes:

Criar um departamento autónomo dentro da Direção Executiva do SNS, dedicado exclusivamente aos cuidados de saúde primários, com competência e autonomia para a elaboração de políticas claras para o sector;

Envolver as comunidades como atores fundamentais para o desenvolvimento de ações e intervenções que visem fortalecer os cuidados de saúde primários;

Promover inter-relações e interconexões em rede baseadas num princípio de responsabilização e num modelo de integração horizontal de cuidados, tipo os sistemas locais de saúde já previstos no recém aprovado novo Estatuto do SNS, onde se integrem as dimensões de reabilitação física, mental e psíquica em meio ambulatorial;

Assentar a governação em Saúde na definição prévia de objetivos claros e mensuráveis, de políticas claras para o sector e da criação de ferramentas de monitorização adequadas e que forneçam resultados atempadamente;

Responsabilizar os prestadores de cuidados de saúde primários pelo seu papel e relevância sociais, disseminando o quanto antes o modelo funcional de unidades de saúde familiar modelo B como modelo único no SNS para prestação de cuidados de saúde primários, constituídas como equipas multiprofissionais por forma a promover a oferta de cuidados de saúde primários fortes e orientados para a comunidade;

Reforçar a resiliência dos cuidados de saúde primários através da adoção de mecanismos previsíveis de financiamento, metodologias de avaliação de risco, boa governação, redes eficientes e de assegurar a sustentabilidade do sector;

Estabelecer meios de financiamento adequado como forma de promoção da equidade no acesso e de minimização de risco de privação financeira do sistema;

Aplicar imediata e efetivamente os incentivos institucionais às unidades funcionais dos centros de saúde com vista a cumprir sem demoras os seus objetivos que são a promoção da prestação de cuidados de alta qualidade e da satisfação de utentes e profissionais;

Consignar até 30% da despesa anual em saúde aplicada nos cuidados de saúde primários como forma de atingir a cobertura universal da população e de obter um sistema de cuidados de saúde com primazia nas atividades preventivas;

Fomentar o trabalho interprofissional nos cuidados de saúde primários com adoção de “skill mix” como forma de potenciar o acesso equitativo a cuidados de saúde;

Fomentar a inclusão de outros profissionais de saúde (psicólogos, dentistas, nutricionistas, fisioterapeutas, entre outros) em número suficiente nos cuidados de saúde primários afim de providenciar uma redefinição mais alargada da carteira de serviços das unidades de saúde familiar e aumentar a assim sua resolutividade;

Criar mecanismos que permitam possibilitar a ocorrência de teleconsultas, assegurando, contudo, a excecionalidade das mesmas e que as mesmas não sejam um fator que contribua para afetar a equidade do acesso;

Redefinir, alargar e uniformizar (simplificando) o sistema de referenciação para outros níveis de cuidados;

Melhorar a acessibilidade através da regulação do volume e tipologia de atividades efetuadas e da adoção de estratégias diferenciadas para a redução dos tempos de espera;

Criar um registo de saúde eletrónico integrado, por paciente – PCE: Processo Clínico Eletrónico, como facilitador da continuidade de cuidados e promotor da redução da sua duplicação, tornando-os mais eficientes e contribuindo para a redução do desperdício, logo de custos;

Promover a prestação de cuidados centrados no doente como foco primordial em todas as interações deste com as unidades de cuidados de saúde primários;

Promover formas efetivas de potenciar a literacia em saúde das populações como potenciador do envolvimento do doente nos cuidados que lhe são prestados, tornando o num aliado na promoção da sua própria saúde e mais uma vez contribuindo para a eficiência do sistema e redução de gastos e custos;

Fomentar a criação de instrumentos de medida de qualidade focados nos cuidados centrados no doente, no acesso equitativo aos cuidados, e ao conteúdo dos cuidados prestados assim como à satisfação dos profissionais que exercem a sua atividade nos cuidados de saúde primários;

Fomentar a utilização regular de indicadores de qualidade válidos e atualizados por forma a manter serviços de prestação de cuidados de saúde sustentados e de alta qualidade;

Envolver as comunidades no desenvolvimento e implementação das políticas de Saúde, através de órgãos já existentes, nomeadamente, quer através dos conselhos da comunidade a nível dos agrupamentos dos centros de saúde, quer através das comissões de utentes a nível das unidades de saúde familiar;

Fomentar a ocorrência de atividades promotoras da saúde e de alerta de riscos para a saúde assim como a participação dos cidadãos como estratégia efetiva de orientação comunitária das unidades de saúde familiar;

Criar mecanismos que motivem e facilitem as intervenções na comunidade como boa prática para chegar a populações com menor acesso e promover comportamentos saudáveis;

E finalmente, definir processos e circuitos de referenciação para outros níveis de cuidados, facilitar a partilha de registos de saúde eletrónicos e de eventuais facilitadores tecnológicos, apoiar o doente no seu processo de saúde/doença e ensinar, nomeadamente, através do ensino de autogestão da sua saúde/doença pelos profissionais de saúde, por forma a obter uma coordenação de cuidados prestada de forma eficiente e efetiva.

A demonstração científica já aí está. Falta “apenas” a vontade política.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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