Opinião

O eterno tormento da Igreja Católica

O eterno tormento da Igreja Católica

Mariana Leitão

Líder parlamentar da IL

A Igreja protegeu os criminosos e negligenciou as vítimas, ouviu os adultos e ignorou as crianças, escudou os poderosos e desamparou os desvalidos, numa vil traição à sua doutrina e ao seu papel de protetora dos mais desfavorecidos

A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica divulgou as conclusões do trabalho realizado ao longo de 2022 e que resultou na recolha de 512 testemunhos validados, com base nos quais foi possível identificar um número mínimo de 4815 potenciais vítimas.

Entre 1950 e 2022 houve, pelo menos, 4815 menores vítimas de abusos sexuais praticados pelos membros da Igreja Católica. A maioria das crianças com idades entre os dez e os 14 anos. São mais de 60 crianças por ano, durante 72 anos, vítimas de padres e outros membros da Igreja Católica.

As conclusões da comissão remetem-nos para a dor indescritível, o sofrimento silencioso e a mágoa solitária em que estas crianças, hoje adultos, viveram durante décadas. Ainda crianças eram sujeitas a abusos dos mais variados tipos, perpetrados pelas pessoas em quem eram ensinados a confiar, em que as suas famílias confiavam e a quem essas mesmas famílias os entregavam na convicção de que estariam seguros, especialmente em locais como igrejas, paróquias, colégios, sedes de escuteiros. Lugares à partida insuspeitos, mas que serviram para que mais hediondos crimes fossem cometidos.

Muitas destas crianças terão sido ensinadas a temer a Deus e a ouvir na voz dos padres a voz de Deus. Muitas terão sido, portanto, traídas pelos próprios mensageiros da palavra divina, que, aproveitando-se dessa posição de autoridade e poder, exploravam a inocência e a fé dos menores e, muitas vezes, a fragilidade socioeconómica das famílias, causando-lhes uma indescritível angústia. Como se não bastasse, estas crianças eram depois esmagadas pela força de uma instituição como a Igreja, votando-as ao silêncio ou ao descrédito e fazendo com que carregassem sozinhas o peso da atrocidade de que tinham sido vítimas.

Durante décadas, os abusadores, sacerdotes e outros membros da Igreja Católica, normalizaram e perpetuaram a cultura do abuso, enquanto se alastrava o sentimento de impunidade, já que aqueles atos eram do conhecimento da Igreja e das suas cúpulas, que os toleraram e encobriram. Houve denúncias às quais nunca foi dado seguimento, relatos que nunca foram documentados, indícios que nunca foram investigados. O tempo passou e a grande maioria dos crimes prescreveu. As vítimas ficaram sem voz e os abusadores ficaram sem sentença.

A Igreja protegeu os criminosos e negligenciou as vítimas, ouviu os adultos e ignorou as crianças, escudou os poderosos e desamparou os desvalidos, numa vil traição à sua doutrina e ao seu papel de protetora dos mais desfavorecidos.

Confrontada com a realidade, com a pressão das denúncias e da comunicação social, não houve alternativa senão pôr fim ao branqueamento e encobrimento da trágica realidade. Depois de décadas de omissões, conivências e colaboração, a Igreja pediu o estudo à comissão independente. E só agora entendeu pedir desculpa.

O trabalho feito pela comissão é notável, já que garantiu que as vítimas, muitas vezes caladas pelo medo e pela vergonha, passassem a ter voz e um vislumbre de justiça. E é fundamental que agora a Igreja se retrate, faça o seu ato de contrição, abra as portas, facilite as investigações, partilhe arquivos e documentos e valorize depoimentos e coopere para que os autores destes crimes sejam levados à justiça e as vítimas recebam todas as formas de apoio que lhes são devidas.

A penitência da Igreja Católica, a sua busca pela absolvição, será longa e tormentosa. Os pecados para expiar são tremendos e entre si e o perdão estão 4815 vítimas.

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