Opinião

Como o Afeganistão se tornou numa realidade chocante

Como o Afeganistão se tornou numa realidade chocante

Luís Correia

Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Wroclaw, Polónia

O Afeganistão, um dos países do mundo mais pobres e mais massacrados por guerras e conflitos internos, atingiu um nível chocante após a queda do governo em 2021. Os talibã tomaram o poder, minaram os direitos e as liberdades das mulheres e tiveram, pela primeira vez na História, reconhecimento internacional

É preciso recuar aos anos 90 para percebermos a brutalidade que o governo talibã exercia sobre a sociedade afegã, não dando as mesmas liberdades nem os mesmos direitos a homens e mulheres. Uma realidade que colocava um peso insustentável nos ombros das mulheres, que lutavam clandestinamente para dar a educação possível às meninas afegãs que sonhavam com uma vida normal, longe das sombras a que eram sujeitas.

A história repete-se nos dias de hoje, com os talibã no poder, banindo e privando as mulheres dos seus direitos mais básicos: saúde e educação.

A visão antiguerra e de direitos humanos para o Afeganistão são as duas peças fundamentais para que seja cumprida a promessa de luta pela igualdade e pelos direitos humanos das mulheres.

A queda do governo afegão – violação das regras islâmicas e das leis nacionais

Tudo começou no verão de 2021, quando os talibã derrubaram, com toda a sua força, o governo afegão que tinha sido eleito democraticamente, acabando por colocar mais um grande obstáculo na luta das mulheres pelos seus direitos. Direitos esses que os talibã rasgaram e deitaram fora, quebrando assim o início de um ciclo democrático com compromissos constitucionais, legais e políticos.

As promessas iniciais dos talibã, que acabaram por dar alguma esperança e alegria às mulheres, rapidamente passaram de moderadas a uma interpretação restrita da Sharia (a lei Islâmica), privando assim as meninas e mulheres afegãs de qualquer tipo de participação em todas as esferas da sociedade e da vida pública.

No final de 2022, as regras impostas pelos talibã acabaram por ir mais longe, banindo oficialmente as mulheres das universidades e privando-as de trabalhar. Imposições que isolaram completamente a sociedade feminina num Afeganistão completamente às cegas.

As ações dos talibã vieram, mais uma vez, demonstrar a falta de direitos humanos e de padrões humanos e étnicos num país onde não impera qualquer direito internacional, fazendo com que, cada vez mais, o Afeganistão se afunde a todos os níveis. Se era difícil o país cair num buraco cada vez mais fundo, eis que os talibã fizeram questão de deixar bem clara a situação: apagar as mulheres de uma sociedade já há muito reprimida.

O Afeganistão enfrenta umas das piores crises de direitos humanos e das mulheres em todo o mundo, muito por culpa das desigualdades e das regras restritivas que imperam no país.

O agora governo talibã conseguiu criar uma lacuna ainda maior em termos de direitos de género, levando o Afeganistão até aos primórdios da humanidade, com a normalização da aceitação da violência contra as mulheres.

A opressão de uma sociedade há muito ridicularizada e menosprezada. O futuro do Afeganistão entre a guerra e a pobreza

Os sistemáticos e intencionais bloqueios impostos às mulheres afegãs minam o desenvolvimento do país e retardam o sucesso educacional. Desde há muito que os princípios básicos da lei de direitos humanos são menosprezados e ridicularizados pelos talibã, discriminando totalmente o género feminino no Afeganistão.

Foi logo após a retirada de tropas estrangeiras do Afeganistão que os talibã ficaram de olho no poder e nem o facto de o governo ter sido eleito democraticamente demoveu o grupo fundamentalista de origem sunita de derrubar a democracia e tomar conta do país.

As negociações de paz com os talibã apenas traziam incerteza ao futuro das mulheres afegãs, que não acreditaram que o grupo nacionalista respeitasse e preservasse as suas liberdades e os seus direitos.

Apesar das garantias dadas pelos talibã de respeito e proteção pelos direitos humanos e das mulheres, as políticas de execução sempre se basearam em políticas de exclusão – eliminação de mecanismos legais que pudessem dar poder e liberdades às mulheres.

As proibições impostas pelos talibã tornaram-se um verdadeiro apartheid de género no Afeganistão, decretando políticas de discriminação e de opressão contra as mulheres, o que provocou um retrocesso civilizacional, tendo consequências desastrosas nas estruturas sociais, económicas, políticas e legais do país, nomeadamente casamentos precoces, alta taxa de desemprego, dependência financeira, pobreza, aumento de risco de abusos sexuais, assédios e violações.

Com a paz local, regional e nacional, bem como a segurança, completamente ameaçadas, os talibã aproveitam os direitos das mulheres para negociações internacionais.

A luta dos Talibã pelo reconhecimento internacional e a utilização dos direitos das mulheres como ferramenta de negociação

A ideologia talibã sempre se focou no extremismo islâmico e nem as negociações de paz levaram a que as vozes e as reivindicações femininas fossem atendidas.

Nem o poder de persuasão de Estados Unidos da América, atores regionais afegãos, atores internacionais e vozes intra-afegãs demoveram a estratégia talibã de derrubar a democracia e de tomar conta de um país caído em desgraça.

Resultado da irredutibilidade do governo talibã em ceder, algumas organizações nacionais e internacionais de direitos humanos e das mulheres viram-se obrigadas a abandonar o país e a suspender os seus programas de apoio, uma vez que se tornou impossível negociar com um governo às escuras.

As políticas de exclusão adotadas pelos talibã baseiam-se única e exclusivamente no objetivo de conseguirem uma moeda de troca valiosíssima: o reconhecimento internacional.

Tanto é que em 2022 a Rússia se tornou no primeiro país a reconhecer o governo talibã. Uma normalização e uma aceitação vindas de um país como a Rússia, na verdade, não surpreende.

Gerou-se uma crise sem fim à vista.

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