Opinião

Suas altezas constitucionais: o meu “sofrimento físico” não dói

Suas altezas constitucionais: o meu “sofrimento físico” não dói

Vítor Matos

Jornalista

Independentemente da opinião que se tenha sobre a eutanásia, a extraordinária produção de jurisprudência pelos juizes do Tribunal Constitucional revela uma profunda falta de humanidade e de compreensão do que é o ser humano

Quando sofri a minha pior crise de Miastenia Gravis, há uns 22 anos, não tinha força para carregar na embalagem do creme de barbear, era incapaz de abotoar uma camisa ou calçar umas meias, via duas imagens porque os olhos perdem a força e vai cada um para seu lado o que torna impossível andar sem bater nas coisas, engasgava-me com facilidade a comer, o que é perigoso e aflitivo, cansava-me de morte a mastigar, e descer as escadas do quarto andar onde vivia era um suplício sem garantia de que conseguia voltar a subi-las. No limite, comecei a sentir falta de ar porque os músculos do tórax também deixaram de funcionar a 100%. E não tinha dor. Repito: nunca tive a menor sensação de dor. E isto não é sofrimento físico?

Os ilustríssimos juízes do nosso altíssimo Tribunal Constitucional acham que não. Das duas uma: ou foram desenterrados de outra era ou vivem alheados do mundo onde foram postos. No acórdão que esta semana chumbou a eutanásia - por sete votos contra seis - suas altezas constitucionais só admitem a existência de sofrimento físico com a existência de dor física. Pois suas altezas estão enganadas.

O sofrimento que eu sofri podia ter outras dimensões, mas exmos. drs. e dras. era sofrimento físico, era fí-si-co, não era subjetivo, nem psicológico, nem emocional, nem coisa nenhuma, era o meu corpo em sofrimento permanente e sem dor.

No acórdão que conhecemos esta segunda-feira, e que chumba a ‘eutanásia’ (a despenalização da morte medicamente assistida) os meretíssimos juízes do Constitucional admitem, muito bem, que o “sofrimento é privado e pessoal (...) multidimensional e subjetivo, “cujas causas podem ser físicas, emocionais ou morais”, mas sublinham que “sobram reservas quanto à conceção de sofrimento físico.” E que reservas são essas? “Em termos práticos”, escrevem os nossos mais elevados juristas, “está em causa saber se um doente com cancro terminal com um prognóstico de esperança de vida muito limitada ou um doente que padeça de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) que não tenham sofrimento físico tem ou não acesso à morte medicamente assistida”. Depois, ligam diretamente o “sofrimento físico à dor corporal” ou, pelo menos, ao “sofrimento que advém da dor”.

Pois podem ficar descansados os meus amigos e familiares, que nunca me passou pela cabeça submeter-me a uma ‘eutanásia’ em caso de ter uma crise irreversível de Miastenia Gravis - se é que isso existe - mas como doente de uma coisa que não dói, revoltou-me a posição do tribunal, ou pior do que isso: deixou-me profundamente preocupado que numa democracia do século XXI um coletivo de juízes - e não um daqueles excêntricos que por vezes aparecem com decisões incompreensíveis - tenham lavrado em acórdão tamanha blasfémia para determinar o grau de sofrimento físico de uma pessoa. A ELA também não dói, mas é uma doença degenerativa, coisa que a Miastenia Gravis - uma doença auto-imune que se pode tornar crónica - felizmente não é.

Ora independentemente da opinião que se tenha sobre a eutanásia, a extraordinária produção desta jurisprudência revela uma profunda falta de humanidade e de compreensão do que é o ser humano. Uma pessoa tetraplégica, sem dor, não está em sofrimento físico? Um doente oncológico sem dor anestesiado com opióides não está em sofrimento físico? Ou “aquilo” é só angústia e sofrimento psicológico e “espiritual”? (Espero, já agora, que os nossos deputados que inventaram esta coisa do sofrimento “espiritual” nos possam provar a existência do “espírito”).

O sofrimento é daqueles intangíveis que faz sofrer cada um à sua maneira. A literatura universal está cheia de sofrimento, assim de repente lembro-me da Teresa a morrer de tristeza no “Amor de Perdição”, ou de sofrimentos mais fáceis de perceber e difíceis de conceber, como aquilo que em “Se Isto É um Homem” Primo Levi relata do que viveu em Auschwitz. Entre os dois exageros do sofrimento psicológico insuportável que leva à morte, ao sofrimento físico e real que permite sobreviver, há muito sofrimento a contar. Cada um sofre à sua maneira e proporção, mas neste plano só com uma grande desadequação à realidade do mundo se pode concluir que o “sofrimento físico” se limita à dor.

PS - Nunca mais tive uma crise com aquela gravidade depois de um tratamento e de uma cirurgia e de medicação permanente e crónica.


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