Deus é de toda a gente que o quiser
É preciso saber as regras para saber quais se tem de quebrar. E Deus sabe o quão bem eu as aprendi
Pensei muito se escreveria esta crónica, porque sei que é um assunto sensível. Quero deixar aqui esclarecido que se a Fé, seja em que religião for, te fizer sentir melhor, está tudo certo com isso. Se não tens nenhuma Fé e estás feliz assim, tudo bem também.
Para se ter Fé não se precisa de ser católico/evangélico/muçulmano/judeu/… praticante. Podes escolher no que queres acreditar, no que faz sentido para ti, numa pessoa Deus com género ou sem género. Mais ainda, não é preciso acreditar num Deus para se ter Fé, pode-se ter fé em mil coisas e em coisa nenhuma.
Já fui católica praticante. Até fui professora de teoria musical e flauta na escola de música da Igreja durante vários anos. Decidi, por fases, afastar-me da Igreja por não me sentir representada. Se há pessoas que continuam a ir à Eucaristia e a fazer parte da comunidade católica e isso as faz feliz, que continuem a ir. Até eu muitas vezes entro numa igreja para ter paz e sossego da correria e falar com Deus.
Esta é a minha história, a minha análise, a minha opinião, os meus sentimentos. Ou seja, o que vão ler diz muito sobre mim, mas pode não querer dizer nada sobre vocês. Não tem a ver com o Papa em si — que tanto dele se tem falado nos últimos dias —, ou com educações religiosas católicas progressistas, mas sim com a vivência que temos de paróquia católica, o Conservadorismo tradicional de Igreja que rege a maior parte do país.
Tenho recebido muitas mensagens de pessoas que se sentem representadas quando falo da minha experiência como mulher que cresceu com a doutrina Católica, por isso, isto é por elas, por nós, para quem precisa de alento.
Cresci com a minha mãe a dizer-me que se eu tivesse nascido numa família muçulmana, eu seria muçulmana. Cresci com Bíblias em todo o lado, com um altar bem grande do Sagrado Coração de Jesus. Cresci com a doutrina regrada de recato da Igreja Católica. Li a Bíblia. O livro do Génesis sempre foi o meu favorito.
Culpei-me por me masturbar. “Por minha culpa, por minha tão grande culpa”. Culpei-me por me sentir atraída pelo meu namorado aos 16 anos. Fui proibida de namorar. Namorei na mesma. Senti-me culpada. Acabei com ele. Nunca lhe expliquei realmente porquê.
Senti-me atraída por uma rapariga. Senti-me culpada. “Rogai por nós, pecadores.” Ouvi que seria uma desilusão se eu gostasse de mulheres. Lembro-me como se fosse ontem. A minha cabeça contra o vidro do carro, a ouvir isto e a chorar. Eu, uma desilusão. Eu, melhor aluna da escola, várias vezes proibida de estudar, por estudar demais. Eu, que ia à Igreja todas as semanas de bom grado, que ia à catequese, que ia ao coro. Eu, uma desilusão.
Levítico, 18:22 “Não se deite com um homem como quem se deita com uma mulher, é repugnante”. Moisés, escritor do Levítico, detentor dos Mandamentos. Um homem, inspirado pelo Deus do Antigo Testamento.
Este Deus que no Antigo Testamento testou o amor que Abraão lhe tinha ao lhe dizer para sacrificar o seu primogénito, em Seu nome. Deus que disse a Abraão que sacrificasse antes um cordeiro.
Este Deus que é o maior exemplo de que se pode passar de uma postura de impor respeito pelo medo, no Antigo Testamento, para uma criação de união pelo amor. No Novo Testamento foi Ele que enviou o seu filho primogénito para ser morto. O seu filho, Cordeiro de Deus.
Este Deus que enviou o seu primogénito para realmente se fazer saber a sua nova palavra, a sua mudança, a sua mensagem ao mundo.
A Bíblia, cheia de metáforas.
O pecado original tido como sexo. “Pai, perdoa-lhes, pois eles não sabem o que fazem” (Lucas 23:34). Leiam a Bíblia. Leiam o Génesis.
“No meio do jardim estava a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal.” (Génesis, 2: 9-10)
“O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden, para nele trabalhar e para o guardar. E deu-lhe estas ordens: «Podes comer do fruto de qualquer árvore, menos do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Deste não podes comer de maneira nenhuma. No dia em que dele comeres, ficas condenado a morrer.»” (Génesis, 2: 15-18)
“Tanto o homem como a mulher andavam nus, sem sentirem nenhuma vergonha por isso.” (Génesis, 2: 25-26)
“A serpente replicou-lhe: «Não têm de morrer. De maneira nenhuma! O que acontece é que Deus sabe que no dia em que comerem desse fruto, abrir-se-ão os vossos olhos e ficarão a conhecer o mal e o bem, tal como Deus.» (Génesis, 3: 4-6)
A primeira referência a sexo no Génesis não tem nenhuma ligação a pecado, mas mesmo assim denota a esperada submissão da mulher e a superioridade atribuída ao género masculino: “Adão teve relações com Eva, sua mulher, e ela engravidou e deu à luz Caim. Disse ela: "Com o auxílio do Senhor tive um filho homem". (Génesis, 4:1). O pecado original foi não temer a Deus, ambicionar o seu poder.
A Igreja que temos nas nossas igrejinhas de pequenos poderes não são as igrejas de Cristo, são as igrejas dos homens. Só homens mesmo. Costumes iguais para tempos diferentes não funcionam. Sempre existiu diversidade, só não havia liberdade para a mostrar porque podia-se literalmente morrer por isso. Em alguns países ainda se morre. Em muitos países eu já estaria morta há muito tempo. Eu, uma desilusão.
Jesus estava ocupado a propagar amor, a tratar mulheres de forma igual à que tratava homens, a ouvir pessoas doentes ignoradas, a acolher marginalizados, a propagar a importância da partilhar o pão e o peixe. Deus preocupado com o amor e os homens preocupados em vigiar o comportamento humano, especialmente o das mulheres.
“Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei.”
Onde está isto nos conservadores da Igreja?
Que sentido faz a riqueza da Igreja segundo a pregação de Jesus?
Onde está a aceitação da diversidade?
Só teremos realmente aceitação do amor e da diversidade quando houver celebração de casamentos homossexuais da Igreja. Quando o casamento na Igreja não for um contrato de procriação e passagem de propriedade da mulher do pai para o marido. Estas ideias da Igreja Medieval que em nada são ideias de Cristo.
És contra o casamento homossexual porque não permite a procriação natural? A capacidade de procriar não santifica um casamento: uma mulher infértil que se case com um homem é menos digna de casar? Um homem infértil que se case com uma mulher é menos digno de casar? O que importa no casamento é o amor. Não é propriedade, não é procriação, não é género. não é virgindade. A ideia de casamento como contrato de procriação é uma ideia medieval.
Sexo não é pecado. Em lado nenhum Deus disse que era pecado. Em lado nenhum Jesus disse que era pecado. Então, o que se passa? Não sabem como controlar as pessoas, pegam no que é mais humano? Como assim? Onde está o amor de Deus incondicional? A igualdade de tratamento de género?
Já dizia Rafaela Jacinto, “O Cristianismo é dos freaks, dos marginalizados; não é nada daquilo que nós achamos hoje em dia”. O Cristianismo começou com as pessoas postas de parte pela sociedade. Jesus não foi aceite pela sociedade, foi crucificado. E nos dias de hoje, enquanto há pessoas a serem postas de parte pela sua orientação sexual, pela sua libertação sexual, pela sua luta pela igualdade, parece que a Igreja está só a lavar as mãos.
A Igreja em que eu cresci não me representa. Mas há muito mais Deus para lá da Igreja.
“Quando a Igreja aceitar abertamente o divórcio, eu volto.
Quando a Igreja aceitar que é tão natural ser-se hetero como homossexual, eu volto.
Quando a Igreja aceitar abertamente sexo antes do casamento, eu volto.
Quando a Igreja aceitar o aborto voluntário como um direito, eu volto.
Quando a Igreja aceitar mulheres como padres, eu volto.
Porque eu não me sinto acolhida, não me sinto representada.
Não tenho nenhum problema com Deus, nem com Jesus, mas com a Igreja tenho muitos”,
disse eu à minha mãe em lágrimas, há quase 10 anos.
Hoje eu não sou uma desilusão, sou um orgulho. Ela diz-mo muitas vezes. 77x7.
Eu, um orgulho.
Que Deus seja um exemplo de que podemos passar de uma postura rígida a uma postura de amor.
Que a Igreja toda comece a abrir portas para o amor e para a diversidade.
É preciso saber as regras para saber quais se tem de quebrar. E Deus sabe o quão bem eu as aprendi.
*
Mais sobre a minha visão da Igreja vs. Fé:
Episódio no Podcast Um Género de Conversa, com Paula Cosme Pinto e Patrícia Reis
Episódio no Podcast Voz de Cama na Antena 3, com Tânia Graça e Ana Markl
Testemunho de Rafaela Jacinto, pessoa não-binária queer católica
“As coisas são todas interseccionais, por isso é possível ser-se queer, e ser-se uma pessoa efetivamente cristã e encontrar validade nisso.” Nesta entrevista podem ler a diferença entre os valores de amor primitivos do Cristianismo e a volta grande que a Igreja fez na época medieval. Rafaela é pós-graduade em História e Cultura das Religões e escreveu muito sobre Teologia Queer e Teologia Feminista, para além do seu trabalho como artista de teatro e performance. A história da relação pessoal de Rafaela com o Cristianismo é mesmo bonita. Leiam a entrevista toda, por favor.
Notícia na CNN sobre o movimento católico LGBT Sopro que integra católicos, padres, psicólogos e professores.
Nota final: este texto faz parte de um conjunto de conteúdos que o Expresso publica para falar diretamente com os leitores mais jovens e sobre aquilo que os afeta mais de perto. Se tiver dúvidas, sugestões ou críticas, envie-nos um e-mail.
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