Havia pouca coisa, provavelmente nenhuma, que o Parlamento Europeu podia ter feito para evitar que Eva Kaili caísse em tentação.
Por mais que custe aceitá-lo, e que se queira muito dizer o contrário, nem mesmo a melhor Lei impede a disponibilidade para cometer um crime. Mas pode dificultá-lo, tornar mais fácil investigar o criminoso e mais difícil o uso do fruto da corrupção. Em último caso, é isso que resulta: porque ou dissuade ou ajuda a apanhar.
Ainda se conhece pouco sobre o escândalo Catargate. Falta, aliás, saber o mais importante: o dinheiro que Kaili terá recebido serviu para quê? Apenas para dizer, como disse numa sessão plenária em Estrasburgo, há poucas semanas, que o Catar tinha levado a cabo “uma transformação histórica” e que tinha feito “reformas que inspiram o mundo árabe”? Além de sabermos com quanto e como foi corrompida, temos de saber para quê. Terá sido só isto?
Confirmando-se que foi para promover uma imagem positiva do país organizador do mundial de futebol, a União Europeia tem de ser clara e dura com o governo de Doha. Mesmo que tenha custos. Como disse a presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, a pensar na necessidade europeia de gás do Catar, “preferimos passar frio a ser comprados”. Espera-se que sim.
Voltando ao crime em Bruxelas, as instituições europeia têm boas regras sobre transparência. Que podem ser melhoradas, obviamente. Mas, atualmente, já é suposto que quem se reúne com os principais decisores da Comissão Europeia esteja inscrito no registo de transparência e que essas reuniões fiquem registadas. Assim como os principais diplomatas e os deputados europeus também podem, e alguns fazem-no, registar as reuniões que têm com representantes de interesses que vão, legitimamente, procurar convencê-los das suas posições sobre legislação que está a ser discutida e votada no Conselho ou no Parlamento Europeu. Sendo que, e isto é muito importante, a menos que o façam a troco de dinheiro ou outros benefícios ilegítimos, não há nada de errado em defender uma qualquer posição que os sindicatos, as Organizações Não Governamentais ou as empresas defendem pública e privadamente e com as quais governos, deputados ou outros decisores concordem. O problema, a haver, e como neste caso há, é outro.
Há poucas semanas, numa sessão plenária em Estrasburgo, Eva Kaili disse que, apesar das supostas reformas e progressos no direito laboral local, “ainda assim, alguns aqui (no Parlamento Europeu, na Europa) querem descriminá-los (aos catarianos), fazer-lhes bullying e acusar de corrupção todos os que falam ou se relacionam” com o Catar.
Não é verdade. Não se acusa de corrupção os que defendem o direito laboral do Catar e os progressos sociais do país. Assim como não se acusa de corrupção quem repete os argumentos de Putin sobre a invasão da Ucrânia. Ou outra coisa qualquer, por mais obscena que possa parecer. Só se acusa de corrupção quem ilegitimamente recebe dinheiro para o fazer. O crime é esse. E, como é óbvio, por mais regras sobre transparência que existam ou existissem, não era isso que ia evitar que a deputada recebesse dinheiro para fazer e dizer, publicamente, o que disse e fez. Não é de esperar que a deputada Kaili colocasse no registo de transparência que se reuniu com a ONG Fight Impunity para receber 600 mil euros a troco de defender os progressos do Catar. E, no entanto, pode ter sido isso, ou parecido, que aconteceu. O que fazer, então?
Ainda sabemos pouco, mas é provável que cheguemos à conclusão que foi o uso do dinheiro que levantou as suspeitas das autoridades. Em Portugal, foram os estranhos movimentos bancários de José Sócrates que levaram à investigação criminal. Normalmente, é assim que se apanham os corruptos. Não é pelo pecado, pelo que fazem a troco da corrupção – muitas vezes coisas legais e à vista de todos -, é como usam o fruto que os denuncia.
Nada disto quer dizer que as regras não possam ser melhoradas. Deve-se incluir a representação de interesses de países terceiros na obrigação de transparência, responsáveis das Instituições não se deveriam ter encontrado com uma ONG, mesmo tendo um nome tão promissor, que não estava no registo de transparência (de resto, ONG, sindicatos ou outra qualquer entidade não são, por princípio, mais insuspeitas que as restantes. As regras devem aplicar-se a todos por igual). E uma comissão de ética pode olhar para outras situações, não estas, em que poderá haver conflito de interesses. Assim como podem e devem haver regras sobre períodos de nojo entre funções públicas e privadas.
Mas, de novo, nada disso impedirá que alguém se disponibilize a dizer, em público, bem de um país, de uma causa ou de uma qualquer proposta a troco de dinheiro. Por muito que custe aceitar. Isso impede-se com regras sobre lavagem de dinheiro, por exemplo, (que estão agora a ser revistas em Bruxelas) ou sobre investigações judiciais. Não porque tornem impossível a prática, mas porque tornam provável a descoberta. E com regras sobre transparência, porque fica mais fácil escrutinar.
Uma nota pessoal que neste caso é necessária. Por razões profissionais, faço exatamente o que digo acima: reunir-me com decisores políticos para lhes transmitir preocupações e posições de várias entidades. Acho, por isso, que sei bem do que falo. Mas quem me lê também deve saber isso.
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes