“Avessos ambos ao tráfico de influências, e antipatizantes dos corredores de fundo rumo à notoriedade, tropismos recorrentes na vida literária, aprendi com ela a abraçar a canseira da formiguita, e a olhar de soslaio a cantoria da cigarra”. Por ocasião do centenário do nascimento de Agustina Bessa Luís, o escritor Mário Cláudio partilha as memórias que guarda da autora
O nosso trato, resultante do temor reverencial pela invulgar oficiante das letras, homenageada hoje no centenário do seu nascimento, procederia por cadências e intercadências de afecto praticado. O pequeno alferes miliciano que procurava desligar-se dos horrores e desconfortos da guerra da Guiné, mergulhando na leitura que o estremasse do verde ubíquo de bolanhas e camuflados, daria com um romance intitulado Homens e Mulheres. Assinava-o Agustina Bessa-Luís, em quem se ia reparando, e que ele de resto conhecia já, rendido à originalidade das crónicas que a mesma publicava no Diário Popular.
Como ídolo materializante da sua crescente devoção à autora, e impressa em retrato a preto e branco numa das badanas, lá estava ela, algo diluída na nortada de Esposende, e por isso como compatriota do reino a Norte que lhes era comum. Assim se justifica que caísse o alferes miliciano, desamparado de mitos redentores, no desejo acalentadíssimo de se achar face a face com quem escrevia o que escrevia, e muito provavelmente como ninguém escrevia na altura, ou como nunca ele conseguiria escrever.
Regressado a bordo de um navio ronceiro, o Carvalho Araújo, que efectuava a sua última viagem de antigo paquete de elegâncias, transportando significativamente na decadência tropas na ida, e caixões na volta, agarrei a mão da amiga que me era íntima, e próxima da romancista, implorando-lhe que me levasse ao orago digno do meu lausperene. Aparecer-me-ia em carne e osso uma senhora burguesa, a receber-nos no átrio de sua casa, e a explicar à nossa medianeira que o colar que trazia ao pescoço fora comprado na Grécia. Se não voltei dali de orelha murcha, fugi por certo no desconsolo do peregrinante a Delfos, tristemente contemplado com uma resposta palmar à sua consulta, do género “Tu és tu, eu sou eu, e nada mais!”
Escapar a semelhante noche oscura, arrumadas as botas e a farda, eis a prova que se me deparava, e ninguém, muito menos qualquer ficcionista dos que se encontravam no activo, surgia capaz de me indemnizar. Não pus de lado a prosa de Agustina, mas passei a respirá-la no voluntário apagamento da pessoa que a lavrava, quero dizer, como se fossem tais linhas tecidas por murmúrios subtis, e suavemente proferidos por um espírito desencarnado. Quem moveria portanto a caneta na residência da Avenida Marechal Gomes da Costa, segregando aquela grafia miudinha, e quase de amanuense auto-satisfeito? A sibila que raros na verdade decifravam, ou a própria, e a braços com a infinita interpretação daquilo que era?
Seria ela a testemunhar a força da sua memória, ao convidar-me para acorrer a um dos serões que se tornariam históricos, e dos quais eu colhera antes discreta notícia. Pintavam-na como quase muda, recomendando ao marido que não se distraísse de alimentar o lume que ia confortando a escassa roda de fiéis, a defendê-los do húmido frio do Inverno portuense. E muito mais calado do que a dona da lareira, aí me surpreenderia eu entre uma aristocrata da Ribeira Lima, uma outra das margens do Tâmega, e um casal, de minha prévia relação, constituído por um jovem médico, e por sua bela e inteligente mulher, prometida a um suicídio distante.
A esse serão, de desacerto continuado, muitos se sucederiam, e a maior parte deles afortunadamente a dois, cunhando por conseguinte a amizade que, ancorada na admiração, dispunha enfim de meios para navegar por sua conta e risco. A sós, e em diversos lugares, falaríamos numa entrega recíproca, tão atreitos como os humanos autênticos a elogiar e maldizer, a fantasiar e deduzir, rindo a bandeiras despregadas dos ultra-sábios, e como nos não atreveríamos a rir na presença de quem quer que fosse. Se a escritora me atraía para o bendito ramerrão da conversa das comadres, ou das comparsas da hora do chá, eu informava-a da cavaqueira dos frequentadores de bordel, ou dos fregueses das tascas. Adestrar-me-ia ela em troca a distinguir as moscas dos mosquitos, e as abelhas das vespas, confiando-me segredos de estúdio que me retenho de transferir aos emergentes.
Avessos ambos ao tráfico de influências, e antipatizantes dos corredores de fundo rumo à notoriedade, tropismos recorrentes na vida literária, aprendi com ela a abraçar a canseira da formiguita, e a olhar de soslaio a cantoria da cigarra. Um dia propôs-me que apresentasse um livro seu, acabado de sair, e recusei-me com o destempero oculto na devida vénia. Expliquei-lhe que, situando-me eu a gatinhar ainda na floresta dos parágrafos, me não apetecia que me supusessem o que não sou, membro da associação de socorros mútuos em que se afunda, e mais do que o admissível, uma estreita nação, posto que de literatura ampla. Ao requerer-lhe todavia o prefácio para uma obra minha, estava ultrapassada a época que legitimava a suspeita de nos servirmos em circuito fechado. E confessando-me ela sem rebuço o que lhe agradava e desagradava no meu trabalho, adquiriria eu o direito, conquistada entretanto a necessária independência, de lhe apontar o que me desgostava no seu, isto sem que alguma vez lhe detectasse a compressão dos lábios, ou o sorriso gelado.
Agora resistiremos os dois a comparecer às exéquias de cada qual, sepultos na multidão dos mortos das sete partidas da Terra. E em sarcófagos de mármore, ou em campa rasa, ficaremos para sempre, se Deus o permitir, esquecidos como se nos impõe na absoluta perfeição da poeira
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