Há seis meses a Rússia decidiu atingir os seus objetivos geopolíticos pelo recurso à agressão armada em solo europeu. A consequência imediata é a diminuição, manu militari, dos limites territoriais da Ucrânia – um Estado soberano - e a provável extensão das fronteiras políticas da Federação Russa. Apesar da reorientação operacional, depois de uma primeira fase perdida da guerra, o Kremlin está a ganhar noutra escala, mais lenta e duradoura. Perante a concentração das forças de Putin no Donbass a leste e com vistas sobre Odessa a sul, a vontade dos ucranianos de parar a ofensiva russa é mais realista comparada ao seu desiderato de reconquistar os territórios perdidos.
A impressão de empate numa guerra que se perfila desde já como longa acarreta o risco do esquecimento, em particular quando tem consequências transversais a nível europeu e mundial. A comunicação política diária do presidente Zelensky procura manter vivo o significado do apoio ao seu país em contexto de dificuldades crescentes no dia-a-dia dos europeus. O perigo da escalada, no sentido de a guerra alastrar a outros países, e a defesa de valores ideológicos estão no cerne dos seus argumentos. No imediato, a prioridade de Kiev é o Sul e o Mar Negro, porque são necessários para manter um território viável, querendo resistir, não conseguindo vencer, no Donbass.
Esta guerra coloca o destino da Ucrânia no epicentro da nova geopolítica europeia. A rutura inequívoca na relação entre a União Europeia (UE) e a Rússia, os dois maiores vizinhos do continente, deita por terra a ideia de uma “casa comum europeia.” Construir esta “casa” idealizada por Gorbachev revelou-se um ideal algo ingénuo no contexto dos anos 1990, onde os termos comuns eram de facto impostos a Moscovo pela sua posição de fragilidade. A nova Rússia pós-soviética ainda reivindicava a sua pertença europeia e o seu papel relevante num continente partilhado. Hoje afirma-se ultra-nacionalista e isolacionista.
No xadrez das relações da Federação Russa com os vários atores ocidentais, as relações com a UE eram aquelas que ofereciam menos ruturas. No entanto, para o Kremlim, a aproximação a Bruxelas significava uma linguagem internacional mais independente face a Washington. A insatisfação russa nas suas relações com o Ocidente foi um terreno fértil para o regresso das suas perspetivas eurasiáticas, cuja versão mais extrema é formulada por Alexandre Duguin. A sua filha foi recentemente assassinada em Moscovo, motivando acusações russas contra a Ucrânia.
Esta visão geopolítica do mundo foi seguida numa versão mais moderada pelo Kremlin e apresentada em 2015 por Putin na formulação de “Grande Eurásia”, abandonando a vontade de participar na criação de uma “Grande Europa.” A Rússia tem usado amplamente esta visão para justificar a aproximação dos países do ex-espaço soviético a Moscovo e para orquestrar uma viragem para a Ásia e a China, simultaneamente afastando-se das suas relações com a Europa.
Na relação com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), as divergências acerca da legitimidade da ordem de segurança europeia nunca deixaram vislumbrar uma acomodação satisfatória do lugar de Moscovo na mesma. Adicionalmente, o “estrangeiro próximo” russo representa um limite político e operacional intransponível, onde a Ucrânia detinha uma importância particular aos olhos do Kremlin.
O ressurgimento russo traduziu-se numa resposta unilateral mais assertiva na ausência de condução de um debate fundador e perene subjacente às reações russas e que os ocidentais não conseguiram dinamizar. Tendo deixado de ser expectável a adesão da Rússia à NATO a partir do início dos anos 2000, não foi possível encontrar um modus vivendi e um modus operandi capazes de equilibrarem as controvérsias fundadoras sobre a legitimidade da sua existência com a necessidade de cooperação assente nas interdependências existentes.
Hoje, apesar das intenções de Putin serem ainda pouco claras, é possível perceber que estão desligadas de considerações económicas e mais centradas no reequilíbrio das relações com o Ocidente. Assim, para além das questões identitárias onde a Rússia é reinventada em afastamento das suas características europeias, Putin instrumentaliza as interdependências e investe em “alianças de conveniência.” A Rússia dialoga com países que partilham da contestação à hegemonia americana, à falta de oportunidades para constituir um bloco político-diplomático. A consequência desta guerra na geopolítica mundial situa-se no redesenhar da ordem mundial que oferece uma leitura mais difícil e coloca o bloco ocidental perante um mundo mais fluido e imprevisível.
Isolar politicamente a Rússia como forma de findar esta guerra poderá ser uma tarefa árdua. Neste contexto, destaca-se o papel da China e de atores regionais como a Turquia e o Irão. O Kremlin entende e dá espaço aos interesses regionais destes últimos. Já na relação com Pequim, Moscovo parte de uma posição assimétrica de poder com a segunda maior potência comercial do mundo. Se o Império do Meio é uma alternativa para Putin em contexto de sanções económicas, não deixa de ser uma opção limitada e contingente ao interesse chinês de evitar uma confrontação com o Ocidente para manter o status quo favorável ao seu desenvolvimento económico e à manutenção do seu regime autoritário.
Os seis meses de guerra na Ucrânia aceleraram mudanças geopolíticas, tanto na Europa como a nível global, que colocam em causa a construção de uma política internacional mais normativa, baseada nos pressupostos da cooperação multilateral desenvolvida desde 1945. A aposta na “paciência estratégica” por parte dos europeus requer uma forte consciência coletiva sobre o mundo em devir onde oportunismo político e revisionismo proliferam.
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