Decorridos cerca de três dias de combates, tornou-se evidente que o Kremlin não conseguiria levar a cabo uma “blitzkrieg”, tomar Kiev de assalto, “desnazificando” uma Ucrânia onde os sinais de nazismo praticamente não existem e por fim desmilitarizá-la. Derrubar o seu regime político e colocar no lugar de Volodymyr Zelensky, uma outra personagem de feição pró-russa, rapidamente assumiu foros de uma miragem. Algo simplesmente inatingível.
O Presidente da Ucrânia a quem, forças especiais russas tentaram capturar sem sucesso, recusa a ajuda internacional para se por a salvo. Prefere, numa atitude de verdadeiro patriota, dar a todos nobre lição de liderança, de coragem e bravura, declarando sem hesitações que o que precisava era de “armas, armas e ainda mais armas” para combater o invasor. Assim foi e ainda hoje é. Kiev continua a clamar por mais e melhores armas, sobretudo mais letais, mais precisas e com maiores alcances, por forma a ser capaz de armar convenientemente os seus combatentes, proporcionar mais simetria ao conflito e recuperar os territórios entretanto anexados por Moscovo. E é justamente aqui e subjaz a questão central do futuro deste conflito.
A inquebrantável determinação dos militares e da população ucraniana em dar forte combate ao invasor russo, revelando uma coragem intrépida sem precedentes, acabou por agitar todo um bloco geopolítico que hoje comummente designamos de “Ocidente alargado” que cerrou fileiras e evidenciou uma união e uma solidariedade que a todos acabou por surpreender.
A ofensiva inicial da Federação Russa ao fim de poucos dias entrou em colapso. Estagnou. Praticamente ao mesmo tempo, Finlândia e Suécia quebram com as suas tradicionais neutralidades e num gesto de notável realismo político, mostram-se prontas a aderir à NATO sem delongas. Nunca antes, mesmo no auge da guerra fria, estes dois países se haviam sentido tão inseguros. A Aliança Atlântica, por seu turno, recebia-os de braços abertos. Neste conflito e para Moscovo no plano político, este facto consubstanciou efetivamente a sua primeira grande derrota. A NATO acabava de se encostar ainda mais às fronteiras da Rússia.
Afinal desta vez, como o fora em 2014 aquando da tomada da Península da Crimeia, não se trataria de um passeio domingueiro. Nada corria conforme previsto. As colunas militares que marchavam sobre Kiev quedavam-se imobilizadas durante semanas, numa extensão de cerca de 60 quilómetros nos seus arrabaldes. Paradas e alinhadas num itinerário ladeado de terrenos enlameados pela “raputitza” para onde não se podiam sequer desviar e muito menos desenvolver para formações de combate, as viaturas militares transformaram-se em alvos demasiado fáceis para os “Javelins”, para os “drones switchblade” e para os “NLAWS” entretanto recebidos pelas forças ucranianas. O resultado, todos nós o conhecemos. Imagens de todo o tipo de viaturas militares russas completamente esventradas chegavam diariamente às nossas casas.
A segunda maior cidade e antiga capital ucraniana, Kharkiv, resistiu estoicamente aos intermináveis bombardeamentos e à investida massiva dos “battle groups” russos. As colunas intermináveis de viaturas blindadas vindas da fronteira leste da Ucrânia, pouco lograram, com exceção daquelas que se dirigiram para a região do Oblast de Lugansk.
Tratando-se de um conflito de alta intensidade, sangrento, muito assimétrico no seu início e onde se cometeram as maiores atrocidades, meio ano significa uma eternidade. As baixas devidas ao combate têm sido anormalmente elevadas, sobretudo para o lado russo. O Pentágono estima-as em mais de 80 000 e a Ucrânia afirma que já morreram mais de 40 000 combatentes russos. Apenas a título ilustrativo desta verdadeira catástrofe, na guerra com o Afeganistão a então URSS, de 1979 a 1989, perdeu, tão-somente, cerca de 15 000 combatentes.
Este conflito poderia estar, na minha opinião, em vias de resolução até ao final deste verão se nós, o dito Ocidente alargado, tivéssemos apoiado de pronto e sem reservas com o material militar adequado as forças ucranianas que ainda hoje clamam por aviões de combate modernos, mais e melhores viaturas blindadas, mais artilharia e mísseis de longo alcance, armas antiaéreas e antimíssil capazes de inverter definitivamente a situação a seu favor.
Mesmo assim, a Ucrânia com o apoio que gradualmente recebeu do Ocidente, tem vindo a ser capaz de se opor de forma sustentada à ofensiva de Moscovo no leste e no sul. É certo que perdeu logo no início o Oblast de Kherson, mais tarde Mariupol e o que restava do Oblast de Lugansk. Porém, com uma melhoria crescente do equipamento militar à sua disposição, os Lança Foguetes Múltiplos, HIMARS e MARS II e um moral mais elevado, a Ucrânia tem vindo a encetar contra-ofensivas limitadas em cada vez maior número, como já o fizera na região de Kharkiv, onde foi capaz de recuperar o território inicialmente perdido.
Mais recentemente foi capaz de provocar uma devastação sem precedentes na base aérea da Frota do Mar Negro em Saky na Crimeia, destruindo aviões, munições e instalações aeroportuárias de vulto. Para além desta ação, atividades de sabotagem, numa base diária, tem sido levadas a cabo sobre instalações logísticas das forças ocupantes, tendo em vista enfraquecer a capacidade militar de Moscovo no sul da Ucrânia. Muito se deve ao movimento de insurreição que aí floresce e às forças de operações especiais ucranianas que o enquadram. A instabilidade permanente que estas ações têm criado no sul tem vindo a desencadear uma desenfreada caça as bruxas nesta mesma região.
Não obstante a Rússia se ter vindo a revelar incapaz de alcançar os seus objetivos originais, redefinindo o seu objeto mínimo à libertação do Donbas, o facto é que tem conseguido materializar pequenos avanços no leste e tem sido capaz de manter uma postura defensiva razoavelmente eficaz no sul.
Assim, e vista por este prisma, esta guerra parece estar, de momento, a tender para um conflito cujo desenlace se encontra na sua essência adiado, para não dizer empatado. Nenhuma das partes conflituantes parece ser capaz de protagonizar, de momento, uma vitória militar decisiva. Parece ter razão Jens Stoltenberg, Secretário-geral da NATO, quando refere que este conflito, nas atuais condições, pode configurar um problema de meses, senão de anos.
Em síntese, uma contra-ofensiva ucraniana em grande escala, conduzindo a um resultado decisivo nesta guerra a seu favor, parece estar ainda, temporalmente algo distante. As condições mínimas para que tal aconteça, todavia não se encontram completamente reunidas. Quiçá a chegada das dezenas de milhares de soldados ucranianos que estão a ser treinados na Grã-Bretanha, agora com a ajuda da Suécia, da Nova Zelândia e da Finlândia, possa vir a desequilibrar decisivamente este conflito. Com o regresso de 10 000 combatentes a cada quatro meses, significa que no prazo de um ano poderão ser geradas seis Brigadas de Combate devidamente equipadas e instruídas capazes de ajudar, de forma eficaz, a levar de vencida as forças ocupantes.
Para que a Ucrânia possa, finalmente, empreender uma contra ofensiva em larga escala e desequilibrar decisivamente este conflito a seu favor precisa de ter combatentes, moralizados e instruídos em quantidade suficiente. Mas não só. Armas e munições em quantidade e qualidade para atingir com eficácia e na profundidade a artilharia do inimigo, viaturas blindadas em número suficiente e por último e de crucial importância, sistemas de armas precisas e de longo alcance, em quantidade, para efetuar o combate em profundidade de forma sustentada, sobre instalações logísticas, pontos sensíveis, postos de comando de escalões elevados e pontos de passagem obrigatória de trânsito logístico, como pontes rodoviárias e ferroviárias.
Ao que parece alguns desses tipos de sistemas e respetivas munições já foram avistados na Ucrânia. Refiro-me em concreto aos mísseis MGM-140- ATACMS, com cerca de 300 quilómetros de alcance, capazes de se mover a velocidades próximas de mach 3,5 e dotados de elevadíssima precisão. Os mísseis AGM-88-HARM, anti radar, que finalmente os MIG 29 ucranianos, adaptados para o efeito, já são capazes de carregar e que tornam temporariamente ineficazes os sistemas de defesa anti aérea russos. As munições M982 Excalibur de grande precisão e alcance (até 40 quilómetros) que podem ser disparadas pelos obuses M777 americanos, pelos PHZ 2000 alemães e pelos Archer 155 mm Suecos.
As sucessivas missivas dirigidas a Joe Biden por senadores, congressistas, militares e diplomatas de reconhecido mérito para que forneça imediatamente à Ucrânia tudo o que esta necessita, não apenas para deter, mas para derrotar a Rússia, parecem estar finalmente a surtir efeito. No último apelo em forma de carta aberta, publicado recentemente pelo “The Hill” (USA political website) são signatárias personalidades como Philip Breedlove, Wesley Clark, Bem Hodges, William Taylor e Kurt Volker, entre muitos outros. Diretamente ou através de estados terceiros tudo indica que este tipo de armamento está finalmente a chegar à Ucrânia e a possibilitar ataques em profundidade como o que se verificou à base aérea de Saky na Península da Crimeia.
Prever os próximos capítulos da narrativa deste conflito, ainda por escrever, não se afigura tarefa fácil mesmo para os melhores analistas, dada a imponderabilidade e a grande incerteza que condicionam muitos e importantes fatores. Entre estes, destacaria em forma de interrogações, somente alguns, porque os considero os mais decisivos. Em primeiro lugar, com que oportunidade, em que quantidade e qualidade o apoio militar do Ocidente continuará a chegar efetivamente à Ucrânia? Em segundo lugar, continuarão as populações ocidentais a apoiar de forma resiliente as decisões dos respetivos governos de alocar recursos significativos em apoio da causa ucraniana? Em terceiro lugar, novos e mais apertados pacotes de sanções económicas continuarão a ser aplicados à Federação Russa e aos seus apoiantes? Em quarto lugar, deixará a Europa, efetivamente, de depender do gás natural russo? Em quinto, enfrentará Putin uma crise doméstica, resultante da contração da economia e dos maus resultados da sua “operação especial”? E por último, face ao visível insucesso da mobilização voluntária a partir dos distritos russos, resistirá Putin à tentação de decretar a mobilização geral da Federação para a guerra? De resto como foi veementemente sugerido por Alexander Dugin, figura sinistra para quem os valores da liberdade e democracia não são de todo universais, apenas ocidentais, e até à data principal ideólogo inspirador do Presidente russo neste seu impulso expansionista, de tentar “reaver aquilo que considera seu por direito”.
Estas são apenas algumas de entre um sem número de dúvidas que se levantam e das quais muito dependerá o futuro deste o conflito. Parafraseando Karl Von Clausewitz, a imprevisibilidade das guerras é uma constante e por isso mesmo, raramente obedecem a guiões previamente estabelecidos. Esta é tão-somente apenas mais um exemplo disso mesmo. Tem tomado rumos surpreendentes e muito afastados dos inicialmente previstos.
Dadas as atuais circunstâncias, afigura-se-me realmente difícil prever, com um elevado grau de probabilidade de acerto, como e quando esta guerra terminará. Certamente à mesa das negociações. Porém em que moldes e sob que condições, subsiste a dúvida. Contudo e para que possamos viver novamente um período de paz duradouro na Europa é minha convicção que este conflito só poderá ter um desfecho admissível. A derrota das Forças da Federação Russa nas planícies e cidades da Ucrânia.
Sejamos sinceros, há muito tempo que a derrota ou a vitória da Ucrânia deixou de ser um problema exclusivo seu. Tornou-se também nosso, do Ocidente alargado como um todo, da liberdade sobre a tirania, dos valores do humanismo sobre o despotismo, da democracia sobre a autocracia. Da luz sobre as trevas. Para quando essa vitória? Talvez no final da próxima primavera tenhamos resposta concreta a essa interrogação!
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