Começamos, vulgarmente, a interação social com desconhecidos a pedir desculpa. É cultural. O peso da culpa é cultural. Para chamar o empregado de mesa, o desconhecido que deixou cair a carteira na rua, ou a senhora que está a atender o balcão…
Se analisarmos a própria palavra – des + culpa – percebemos que a primeira parte anula a segunda. O “des” anula a culpa, retirando-nos o peso da mesma.
Talvez traduza a nossa cultura estranha que se preocupa mais em encontrar culpados e falhas em vez de valorizar e dar mérito a quem merece. Isso também é histórico e até biológico. Comecemos precisamente pela explicação científica para tentar perceber este fenómeno que tem tantas consequências a nível pessoal, social e mesmo profissional.
O sentimento de culpa é natural?
Regra geral, acreditamos que, o que as pessoas fazem, é um reflexo de quem são. Não se consideram, numa primeira instância, os fatores que podem influenciar as reações e comportamentos de uma determinada pessoa (pensar, por exemplo, que pode estar a ter um mau dia devido a um problema pessoal / familiar, ter em conta o seu contexto social, etc).
O escritor José Luís Peixoto explica bem o meu sentimento:
“Acabamos, sem que tenhamos noção disso, por carregar o peso daquilo que os outros pensam que somos quando eles só tiveram acesso a uma parte de nós. Muitas vezes, os outros não nos deixam mudar porque não estão dispostos a mudar a forma como nos vêm. Fazê-lo implicaria que eles próprios mudassem.”
A natureza humana promove naturalmente a culpa, mas há uma explicação biológica para isto e chama-se Efeito de Knobe.
De acordo com este filósofo norte americano, a explicação está no comportamento do nosso cérebro, mais precisamente no córtex pré-frontal, onde são processados os eventos positivos. Quando nos acontece uma coisa boa, esta é processada nesta área do cérebro, mas com alguma demora. Talvez por isso associamos tão frequentemente os acontecimentos bons a uma questão de sorte – leva o seu tempo para que consigamos ter a noção de que aquela coisa boa nos está a acontecer, de que estamos mesmo a viver “aquilo”.
Já os eventos negativos despertam em nós uma reação imediata porque são processados pela amígdala. É este segundo processo biológico que dá origem ao “nó na garganta” com que ficamos quando algo não corre como esperado e somos confrontados com uma má experiência.
A consequência mais evidente deste processo biológico é a seguinte: ações que conduzem a consequências negativas são julgadas como sendo mais intencionais do que ações semelhantes que conduzem a consequências positivas. Também por isso, as ações negativas têm mais peso.
O mau pesa mais que o bom?
De acordo com o psicólogo John Gottman (1970), o rácio é o seguinte: são precisas 5 experiências positivas para igualar uma experiência negativa. O bom só pode efetivamente superar o mau numa questão de supremacia numérica (muito mais situações boas do que más).
Pense numa determinada lista de prós e contras que possa ter feito relativamente a uma decisão que precisava de tomar: quantas coisas boas foram necessárias ter em contra para que as mesmas pesassem mais do que apenas uma má?
Efetivamente o cérebro responde mais a más experiências do que a boas e retém as memórias das más experiências por muito mais tempo.
Este conhecimento científico e os vários estudos que foram feitos neste campo permitem-nos perceber porque é que o sentimento de culpa é efetivamente natural e as experiências más “ganham” às experiências boas. Assim, só nos resta uma solução: usufruir da nossa grande mais-valia enquanto seres racionais e não cair numa espiral negativa que nos afete a nós próprios e a quem nos rodeia.
Ceder ao “mau”, dar mais lugar aos instintos primários do que à racionalidade, origina comportamentos altamente destrutivos que afetam seriamente as nossas relações (e o nosso próprio bem-estar).
Podemos ter 10 anos de um desempenho consistentemente acima da média, que alguém vai sempre enviar um email carregado de julgamento por um qualquer mal entendido ou falha administrativa, em vez de pegar no telefone e clarificar. Elogiar ou agradecer ficam para terceiro plano.
A cultura de culpa nas organizações
Sabia que o nosso cérebro interpreta a atribuição de culpa, com a mesma seriedade que uma agressão física?
Mesmo que de forma inconsciente, a quantidade de vezes que culpamos o outro equivale às vezes que estamos a “agredi-lo”.
De acordo com este artigo, a culpa é o sentimento mais destrutivo a nível das relações laborais. Tendemos a culpar os outros quando as coisas correm mal. A encontrar a falha do colega nos trabalhos conjuntos, ao invés de assumirmos, de antemão, que o erro pode ter sido nosso.
A culpa, por si só, aniquila comportamentos saudáveis. No entanto, o modo como se lida com os erros dentro de uma organização também tem uma grande influência na maneira como os colaboradores conseguem (ou não) assumir a culpa.
Ninguém vai querer assumir erros ou problemas se souber, de antemão, que vai ser castigado pelos mesmos. Isto mata a inovação logo à nascença e a capacidade de propor novas soluções, com receio que sejam um falhanço. Em vez de aprenderem com os erros, numa cultura de culpa, os colaboradores tendem a esconder os mesmos.
Para eliminar o sentimento de culpa e promover aquilo que verdadeiramente importa e faz a organização crescer - a empatia nas equipas - devemos mudar o nosso esse mindset. Adotar uma mentalidade de aprendizagem continua e abertura para partilhar erros, bem como práticas saudáveis que permitem eliminar a cultura de culta dentro da organização. Entre elas:
- Adotar a prática de partilha de erros e problemas
Errar é humano e, por isso, deve ser visto de forma natural. Culpar o outro não traz absolutamente nada de positivo, pelo contrário. Devem-se utilizar os problemas e erros como momentos de aprendizagem, e não de humilhação. Erro assumido é erro corrigido como diria o nosso Primeiro-Ministro.
- Foco no que é possível mudar
Não podemos mudar o outro. Não temos (nem devemos ter) controlo sobre o mesmo. Mas temos controlo sobre nós próprios e só conseguimos agir quando não nos consideramos vítimas passivas dos nossos próprios erros e problemas.
Uma abordagem sistemática aos problemas no sentido de os dissecar e perceber onde ocorreu determinada falha, é mais útil do que adotar uma atitude holística de perceber apenas de quem é a culpa.
Quando confrontados com um determinado erro, mesmo tendo a certeza de que a culpa não é nossa, a abordagem que trará mais coisas positivas a curto, médio e longo prazo, é a de questionar: “Como posso eu ter contribuído para este problema, direta ou indiretamente?”
Como ultrapassar o sentimento de culpa?
A resposta é mais simples do que parece – o segredo está na empatia. Em utilizar, como referi acima, a nossa capacidade racional (e relacional) para perceber a influência de diferentes contextos e situações.
Conseguirmos perceber o que se passa com o outro em vez de cedermos à nossa primeira reação (ou julgarmos o outro pela sua primeira reação). E isto passa pela capacidade de conseguirmos estar cientes de nós próprios, ou seja, de conseguimos estar conectados com a nossa própria pessoa, de acordo com a socióloga Brené Brown.
Acima de tudo, temos que assumir que nos cabe a nós fazer uma escolha: acreditar na outra pessoa ou não, independentemente da perceção que queremos ter da mesma. Isto porque a necessidade de controlar a “imagem” que temos de determinada pessoa, vai moldar o julgamento que fazemos da mesma ou de situações associadas a ela.
Esta é uma situação que acontece especialmente em relação às pessoas que idolatramos ou temos em alta consideração – como um chefe na empresa. Por forma a manter a imagem de “ídolo” que temos por aquela pessoa, escolhemos não lidar com o facto de que a mesma está a ser afetada por problemas que consideramos banais, caso contrário, vamos perder a admiração que temos por ela.
No entanto, esta atitude não passa de uma defesa pessoal. Não é em relação ao outro, mas a nós mesmos. Fazemo-lo por uma questão de segurança própria, para não abalar as nossas crenças e opiniões formuladas.
Como diz a socióloga, quando isto acontece, é porque não me conheço bem o suficiente para conseguir tirar o foco de mim mesmo e focar no que o outro precisa naquele momento, independentemente de isso me ir afetar posteriormente ou afetar a perceção que tenho daquela pessoa.
É uma questão, mais uma vez, de empatia e de, sobretudo, não nos sentirmos ameaçados.
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