Opinião

O aborto não será ilegal, mas o sistema judicial aguentará?

O aborto não será ilegal, mas o sistema judicial aguentará?

Julie Machado

Mestre em Teologia, luso-americana

Uma fuga de informação como a que aconteceu em relação à posição do Supremo Tribunal dos EUA sobre o aborto nunca aconteceu, porque se trata desta vez de um documento completo. Estão todos interessados em discutir se o aborto deverá ser protegido, mas ninguém quer saber se as decisões do Tribunal são protegidas

Muita tinta tem corrido sobre o aborto, um tema especialmente fraturante e emotivo, desde 3 de maio. Nesse dia saiu a notícia de que um funcionário (“clerk”) do Supremo Tribunal dos Estados Unidos passou uma informação confidencial, que nunca deveria ter sido divulgada, ao jornal Politico. No passado, houve muito poucas fugas de informação antes do anúncio formal de uma decisão: em 1852, em 1919 e em 1973, com o caso que agora está em discussão, Roe vs Wade.

Nestes casos houve imediatamente uma investigação e o responsável pela fuga de informação demitiu-se. Em 1973, o juiz principal, Warren Burger, ficou irritado e exigiu uma reunião com a revista Time para a repreender por ter rondado e pressionado o Tribunal, e mencionou numa nova regra, chamada a “regra de 20 segundos”: qualquer funcionário (“clerk”) apanhado a falar com jornalistas seria despedido em 20 segundos.

Uma fuga de informação como esta nunca aconteceu porque se trata de um documento completo, um rascunho da decisão final redigida pelo juiz Alito. Também parece haver proteção a quem o fez, pois não houve qualquer investigação, demissão ou despedimento.

Esta fuga de informação abala o funcionamento do Supremo Tribunal de forma dramática. A função do Supremo Tribunal é decidir se os casos que chegam até ele são constitucionais ou não. Eles formam um dos três braços do poder e servem também para pôr os outros dois braços (executivo/Presidente e legislativo/Congresso) em cheque. O Tribunal demora várias sessões e vários meses a discutir um caso entre os juízes, a escrever os rascunhos da decisão, e só quando está terminada é revelada ao público e aos meios de comunicação social. Este processo requer proteção e privacidade, especialmente da opinião pública e dos media. É um processo que exige uma análise profunda da Constituição americana, da história da lei e dos casos antecedentes. São os documentos que pesam, e não a pressão que possa vir de fora do Tribunal.

Esta fuga de informação foi feita para interferir com este funcionamento protegido e privado do Tribunal. A decisão, pelo que se vê no rascunho, está bem documentada e os juízes concordam com ela, por 5-4. A decisão final iria sair no intervalo de tempo de um mês ou dois. Com esta fuga, pretende-se mudar o voto de um dos juízes. Os juízes não sofrerão apenas a pressão dos media, mas também ameaças à sua vida e à das suas famílias.

Uma semana depois desta informação ter sido divulgada, mais de 100 pessoas protestaram à porta da casa do juiz Alito, que elaborou o rascunho. Sem qualquer repreensão aos meios de comunicação social e até incentivando-os. Várias sedes de grupos contra o aborto têm sido incendiadas ou vandalizadas e também paróquias católicas. A presidente da Câmara (“mayor”) de Chicago, Lori Lightfoot, escreveu um tweet no dia 10 de maio dizendo: “Meus amigos da comunidade LGBTQ+: o Supremo Tribunal vai atacar-nos a seguir. Este momento tem de ser uma chamada às armas.”

Tantas emoções, palavreado e violência, mas a questão que o Supremo Tribunal decide agora não é se o aborto deveria ser ilegal ou não. Decide se é constitucional o governo federal obrigar a que o aborto seja legal em todos os Estados, ou se isso é uma decisão que deve ser tomada a nível dos Estados - e não a nível federal.

Isso, para qualquer pessoa que conheça um pouco da História e da Constituição norte-americanas, é óbvio. Os Estados Unidos foram fundados com princípios muito claros, bem explícitos nas poucas palavras da Constituição: que o governo federal deve ser limitado e que, para o povo ter mais voz, as decisões legislativas deveriam ser tomadas ao nível mais próximo, ou seja, dos Estados. As grandes cidades têm os seus interesses e o mundo rural também. Até no sistema eleitoral está contemplado não usar o voto popular, para que as cidades, que têm mais população, não pesem mais do que os lugares mais rurais, que também têm direito a ter voz.

Existe um princípio chamado subsidiariedade, em que os assuntos políticos e sociais devem ser decididos e geridos ao nível mais local possível. Não são meia dúzia de políticos, ou até de juízes, a viver muito longe de mim que devem controlar tudo na minha localidade. Os governos locais e as estruturas locais devem ter mais peso para decidir conforme as suas circunstâncias e, nomeadamente, para o povo local ter mais voz. O voto de um cidadão no Tennessee deveria contar tanto quanto o de um citadino de Nova Iorque, especialmente para a sua localidade. Esta decisão do Supremo Tribunal revogará a anterior sobre o aborto, para que não haja nenhuma lei federal sobre o aborto, e passará essa decisão para os Estados.

Há Estados, sempre mais democratas e de esquerda, como a Califórnia e o Massachusetts, em que o aborto provavelmente será sempre legal. Quem quer muito fazer um aborto, pode sempre viajar para esses Estados e fazer lá um aborto. Há outros Estados onde já existem leis para fazer o aborto ilegalmente se esta decisão avançar.

Quem deve decidir este assunto? Devem ser os media, maioritariamente de esquerda e a favor do partido democrata? Devem ser os milionários com interesses especiais em promover o aborto, Bill Gates por exemplo, que investem muito dinheiro em financiar uma gigantesca campanha a favor do aborto, não só nos EUA mas especialmente em África? Ou não deveria ser cada Estado, cada localidade, a decidir por si e a dar mais voz aos seus cidadãos e aos seus votos? Isso sim, chama-se democracia.

Há uma tendência recente para querer derrubar todos os sistemas com violência, por serem “patriarcais” ou por serem “racistas”. A seguir à morte de George Floyd, os Estados Unidos assistiram a protestos violentos como nunca antes, com a intenção de eliminar a polícia, o Governo, as escolas, etc. Qualquer sistema contém “racismo sistemático” e por isso é melhor começar de novo, eliminar a História, derrubar estátuas, e reerguer novos sistemas, mais puros.

Esta fuga de informação, por ter sido um documento completo, e por não haver investigação nem consequências para quem o fez, representa um ataque sério ao funcionamento atual e futuro do terceiro braço do poder nos Estados Unidos. Revela o poder dos media em interferir num processo judicial que nem decide diretamente o aborto, mas sim a que nível o aborto é decidido, ou seja, a interpretação da Constituição. Representa a falta de interesse do público nesta interferência no sistema judicial e como a violência e a emotividade são facilmente provocadas. Estão todos interessados em discutir se o aborto deverá ser protegido, mas ninguém quer saber se as decisões do Tribunal são protegidas. Veremos se os juízes e o sistema judicial resistirão a este golpe e a estes meses de agitação social.

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