Habeas Corpus
O ex-ministro da Economia do governo de José Sócrates, indiciado no "caso EDP" e há cinco meses em prisão domiciliária, contesta as decisões tomadas pela Justiça a seu respeito
Ex-ministro da Economia
O ex-ministro da Economia do governo de José Sócrates, indiciado no "caso EDP" e há cinco meses em prisão domiciliária, contesta as decisões tomadas pela Justiça a seu respeito
"Se a liberdade significa algo, significa o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir"
George Orwell
Não me surpreende que o pedido de habeas corpus que apresentei tivesse sido indeferido. Apesar deste resultado, que já esperava, trata-se de uma decisão importante para ser usada no momento certo.
O Habeas Corpus, expressão latina que significa “que tenhas o teu corpo”, é uma medida contra o abuso de poder que resulte em limitar a liberdade individual. A obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica é uma forte limitação á liberdade individual.
O Habeas Corpus tem origem na Magna Carta inglesa de 1215, estando contemplado na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e na Constituição da República portuguesa de 1976. Esta estabelece no seu artigo 31.º que haverá habeas corpus contra o abuso de poder em virtude de prisão ou detenção ilegal. É isso que importa aqui esclarecer.
Estou sob investigação há mais de dez anos sobre factos que remontam há mais de quinze anos. Não fui acusado de nada, não tive oportunidade de me defender em tribunal, não fui condenado, nem a sentença transitou em julgado. Além desta situação que não se passaria no Estado Novo, estou há cinco meses sob prisão domiciliária e apresentei um pedido de habeas corpus, que se fundamentou em duas razões muito objetivas e fáceis de perceber pelo cidadão comum:
Primeiro, ter sido cometido um abuso de poder, que consiste na ilegalidade de colocarem-me perante a alternativa de ser sujeito a prisão domiciliária ou pagar uma caução milionária; e
Segundo, o erro grosseiro que teve lugar na apreciação do requisito do perigo de fuga em que se fundou a medida de coação que me foi imposta.
Primeiro, quanto ao abuso de poder.
É ilegal impor a alguém uma medida de prisão domiciliária e, ao mesmo tempo, oferecer-lhe a alternativa de permanecer em liberdade caso aceite pagar uma caução milionária- no caso, a maior caução jamais imposta em Portugal. Naturalmente, este abuso de poder é uma ilegalidade que viola a Constituição da República, a qual não permite que a liberdade se compre, muito menos colocar em situação de vantagem um milionário relativamente a uma pessoa com menos recursos.
Isto não escapou ao Tribunal da Relação, que tomou uma curiosa decisão, que foi a seguinte: em virtude de se tratar de uma ilegalidade, o processo deveria baixar ao tribunal de instrução e o juiz de instrução Dr. Carlos Alexandre vai ter de se decidir ou pela aplicação da medida de obrigação de permanência na habitação, ou pela imposição de uma caução.
Segundo, quanto aos erros grosseiros.
Os motivos invocados para justificar o perigo de eu poder fugir são, no seu conjunto, um erro manifesto e grosseiro. Erro manifesto não é uma forma de expressão chocarreira, em termos jurídicos significa “erro notório, crasso, evidente, indesculpável, que se encontra fora do campo em que é natural a incerteza”.
Sinceramente, não se consegue compreender o que terá passado na cabeça dos procuradores do processo EDP quando formularam a lista de motivos para haver perigo de eu fugir, nem na do juiz de instrução Dr. Carlos Alexandre, quando as assinou de cruz.
Primeiro, sempre compareci das seis vezes que fui chamado a prestar declarações, segundo, não encerrei nenhuma conta bancária, terceiro não dissipei património, pelo contrário, investi em Portugal e tenho pena que não me deixem investir mais, e quarto tinha comigo os meus documentos pessoais quando da última vez fui interrogado.
Também é invocado que tenho grande mobilidade por ter filhos que vivem no estrangeiro e por ter ensinado em vários países.
Na realidade, cinco dos meus seis netos têm nacionalidade estrangeira, porque os meus filhos tiveram de emigrar, como muitos outros na mesma situação, dados os salários miseráveis pagos aos jovens em Portugal.
Por outro lado, recebi vários convites para ensinar em universidades estrangeiras, nomeadamente em três das dezasseis melhores classificadas nos rankings internacionais, o que é uma honra, não é um crime.
Como se estes erros crassos não bastassem, foi fantasiado que ter deixado de viver nos Estados e passado a residir em Espanha, em Alicante, estará relacionado com o facto de eu tentar evitar medidas de coação semelhantes a outros arguidos do caso EDP.
Na realidade, comecei a ensinar no seminário de doutoramento da Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais em 2018 e desde esse ano tenho um DNI e seguro de saúde espanhol, quando as medidas de coação impostas a outros arguidos do caso EDP tiveram lugar em 2020, ou seja... dois anos depois.
Perdoem-me a expressão, mas só um lunático pode pensar que alguém mude a sua residência dos Estados Unidos para Espanha, um país do espaço Schengen situado mesmo aqui ao lado e em que vigora o mandato de detenção europeu, com o propósito de fugir á justiça.
Não estou surpreendido com a decisão de indeferir o meu pedido de habeas corpus por duas razões principais.
Primeiro, porque tal iria colocar em cheque o sistema de justiça no seu conjunto, os procuradores do Ministério Público, o juiz de instrução e o Tribunal da Relação.
Segundo, pela indiferença generalizada perante a injustiça quando ela não nos bate á porta. Lembro-me todos os dias das palavras de Benjamin Franklin, um dos pais fundadores dos Estados Unidos da América, “justiça nunca será feita até aqueles que não são afetados se indignarem tanto como os que são.” Enquanto aqueles que não são afectados pelo funcionamento da justiça não se indignarem, ela não mudará.
No fundo, esta indiferença perante o funcionamento da justiça, na qual, de acordo com os estudos de opinião, não acreditam dois em cada três portugueses, significa o mesmo do que o encolher de ombros generalizado perante Portugal estar em vias de ser ultrapassado por todos os países da EU salvo a Bulgária, o que nos devia envergonhar a todos.
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