Opinião

Síndrome do pequeno poder

Síndrome do pequeno poder

André Fontes

Consultor e Professor de Gestão de Talento e Liderança no ISCTE | Executive Education e IPAM. Autor dos livros “Disse-me um velho marinheiro | um guia para tempos confusos” e “Tudo o que o velho marinheiro não me disse”

Quem é, por uma razão ou outra, uma figura a quem é reconhecido mérito e autoridade, não faz bandeira disso. Quem o faz é precisamente quem sente necessidade constante desse reconhecimento para alimentar não mais que o seu ego pessoal. Este comportamento resulta de um síndrome chamado Síndrome do Pequeno Poder

"Uma aula sem emoção não é uma aula. Um bom Professor ensina o que é."

Partilhei nas redes, não há muito tempo, esta afirmação retirada do meu livro “Disse-me um velho marinheiro – um guia para tempos confusos”.

Estudo os temas da Gestão de Pessoas e Liderança desde 1996. Tenho aprendido muito com colegas, certamente, mas também (e muito!) com os executivos das empresas, alunos e com as equipas com as quais colaboro. Aprendo (e aprende-se) essencialmente com a troca de experiências; com a experiência em si.

Enquanto aluno, imagina que estás prestes a entrar para o curso com que sempre sonhaste ou prestes a começar uma especialização na qual investiste muito financeiramente, na esperança de dar um salto na tua carreira. O que preferes encontrar “do outro lado”?

  1. O melhor professor catedrático que está na faculdade há anos e sabe todos os livros e autores na ponta da língua – e que, por sinal, é também um excelente professor;
  2. Um professor com menor formação académica - ainda que perfeitamente qualificado para o cargo – mas com mais de 20 anos de experiência no mercado nas áreas que vais aprender? Alguém que integra teoria com a vida real.

No fundo, a questão é: o que achas que te vai ensinar mais? Ou melhor dizendo, quem achas que vai contribuir para a tua formação de forma mais impactante?

Claro que me podes responder que depende muito da área. Provavelmente se fores estudar Filosofia ou História ou mesmo Literatura, a teoria é rainha. Já se fores estudar Liderança (e muitas outras disciplinas), a história é outra.

O que sabe um líder das verdadeiras questões de liderança se nunca tiver liderado uma equipa na vida? Ou sequer ter trabalhado numa empresa? Se nunca tiver sentido na pele as dores de uma chefia ou tiver ouvido de outros sobre os seus maiores desafios?

Não há professora como a experiência e, sobretudo, a troca de experiências. É a vivência de cada situação que nos ensina verdadeiramente sobre ela e todos já sentimos, pelo menos uma vez na vida, que não há nada como “pôr as mãos na massa”.

Há uma outra expressão de que gosto muito que traduz bem isto - “In theory, there is no difference between practice and theory. In practice, there is.” Ou seja, algo como: “Na teoria, não há grande diferença entre prática e teoria. Mas na prática há.”

Sou pragmatista neste aspeto e afirmo convictamente que a realidade tem que ser experienciada. Só aprendemos através da interação com o ambiente e com os outros. Sei disto porque são mais de 20 anos de experiência numa área que ponho em prática quase todos os dias nos mais diversos contextos (incluindo o académico, porque ainda há Diretores de Mestrado com mundo e preocupação com o aluno que tiveram a amabilidade de me convidar). Aliás, não consigo perceber como os alunos não se revoltam com Universidades que têm Professores que ano após ano apresentam um péssimo desempenho e continuam a leccionar apenas porque têm o titulo de (PhD) ou são amigos de alguém.

Não sinto falta de um estatuto académico que valide as minhas competências enquanto professor nas áreas que domino, ainda que seja essa mesma burocracia que me impede de conseguir chegar mais longe e de lecionar em muitas instituições. A culpa, claro está, não é dos que conseguem e se esforçam para alcançar esse estatuto – mais que merecido – e que dele usufruem. A questão vai mais longe e tem raiz cultural. Digam o que disserem, ainda estamos longe de deixar de ser o país dos Doutores e Doutoras para designar todos e mais alguns. Para mim, ter que me sujeitar aos determinismos de um qualquer status quo, neste contexto ou em qualquer outro é, como se diz “em bom português”, bullshit!

Never tell a lie when you can bullshit your way through.

Um artigo fenomenal do The New Yorker explica a origem desta expressão, mas, apesar de conhecermos o seu verdadeiro significado, vamos, para o propósito deste artigo, traduzir bullshit por absurdo ou disparate, sempre que possível.

Uma das características mais notáveis da nossa cultura é que é constituída por um enorme conjunto de absurdos. Esses absurdos coexistem com a sociedade de forma omnipresente e a maioria de nós considera que os consegue detetar. Por isso mesmo, achamos que não é um problema que mereça especial atenção ou que seja assim tão nocivo para o bem-estar comum.

Da forma como é visto, não é tão grave dizer um disparate como é mentir e há uma diferença concreta entre um bullshitter (enganador) e um mentiroso.

O enganador finge as coisas, mas porque efetivamente não as percebe (ou não quer perceber) e apresenta uma espécie de indiferença perante a verdade. Já o mentiroso, está preocupado com a verdade num sentido perverso: quer afastar-se (e afastar todos) da mesma de forma consciente.

A diferença entre mentir e enganar não se resume a uma questão de nível de gravidade e ser bullshitter também não é menos perigoso que ser mentiroso. Pelo contrário. Nesta comparação percebemos que pelo menos o mentiroso preocupa-se com a verdade (nem que seja para escondê-la), enquanto o bullshitter é simplesmente capaz de a ignorar.

Características de um bullshitter

Bullshitter - a person who tries to persuade someone or to get their admiration by saying things that are not true. – Dicionário Cambridge

A definição de bullshitter é um pouco mais fácil de perceber e consegue ser facilmente projetada na figura daqueles que vemos (e ouvimos) frequentemente na esfera pública com discursos persuasivos. Geralmente encontrados no mundo da política – mas não só – este tipo de pessoas tem características comuns, nomeadamente:

- Apresentam um discurso abstrato e de difícil explicação que deve ser grande na sua forma, mas pouco profundo no seu conteúdo. Para todos os efeitos, quem está a persuadir deve fazê-lo tão bem que não deixa margem para dúvidas ou questões de tão complexo e hipnotizante que é o seu discurso.

- Identificam-se com a “escola” de Nietzsche, em especial com a sua afirmação There are no facts, only interpretations (não há factos, apenas interpretações). Negam a verdade absoluta e jogam sempre a cartada da diferença de perspetiva e do subjetivismo da interpretação para justificar porque é que aquilo não é bem assim. Quanto mais o tema estiver ligado a questões objetivas, dependente de fatos, mais difícil se torna o discurso persuasivo de um bullshitter.

- Repetem uma cassete com reflexões a cheirar a mofo e, num exercício de poder, tentam impor-se a qualquer argumento ou pessoa. Os bullshitters agem perante a sua verdade e, quando o fazem, esta torna-se a realidade em que vivem. Não apreciam perguntas.

Todas estas características são questões complexas que se prendem com muitas outras como a autoestima, a segurança e o medo de perder o poder.

Os bons profissionais, as instituições e a sociedade no geral devia ser menos tolerante com os bullshitters desta vida: dos políticos, aos comerciais, religiosos e também, aos académicos porque este tipo de gente agrupa-se e espalha-se como um vírus. Combater esta doença que se manifesta mais frequentemente do que o desejável e que tem uma síndrome muito claro.

O síndrome do pequeno poder

Quem nunca teve a feliz oportunidade de se encontrar com outro alguém que exigiu um tratamento superior ao que lhe é efetivamente atribuído pela norma social só porque sim? Aquela pessoa responsável, por exemplo, pela reposição de produtos na prateleira do supermercado, mas que se apresenta como “stock manager” ou exigir ter no cartão multibanco o título de “Dr” ou um burocrata enviar-lhe 10 emails a pressionar porque não preencheste um dos vários campos desnecessários de um formulário como se o mundo fosse acabar…

Não deixa de ser um comportamento interessante de analisar quando, por oposição, aqueles que têm efetivamente certificação para utilizar determinado título prescindem, muitas vezes, de recorrer ao mesmo.

Quem é, por uma razão ou outra, uma figura a quem é reconhecido mérito e autoridade, não faz bandeira disso. Quem o faz é precisamente quem sente necessidade constante desse reconhecimento para alimentar não mais que o seu ego pessoal. Este comportamento resulta de um síndrome chamado Síndrome do Pequeno Poder.

Passo a explicar: trata-se de um síndrome daqueles que detêm um certo poder que fazem uso do mesmo de forma absoluta e imperativa sem se preocupar com as consequências ou efeitos colaterais da sua autoridade indiscriminada.

Diria que, regra geral, este não é um síndrome raro de encontrar na sociedade. Pelo contrário. É quase uma questão animal que é transversal ao ser humano. Uma questão, acima de tudo, territorial – dão-nos uma pequena parcela de poder e assumimos essa superioridade como algo absoluto que nos permite controlar o outro. Assume-se uma autoimportância estratosférica. Há um provérbio jugoslavo que diz algo como “se quiser conhecer a verdadeira essência de uma pessoa, coloque-a numa posição de poder”.

É muito perigoso não conseguir gerir o ego e deixar-se ser afetado por este síndrome. Os efeitos secundários são irreversíveis e incluem cegueira. estupidez e afastamento do outro.

Regra geral, quem sofre disto é (ou torna-se) também bullshitter para manter o seu pequeno reinado.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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