Ainda há poucos meses vivenciávamos uma crise sem precedentes. Nas palavras do Secretário-Geral das Nações Unidas (SGNU), António Guterres, a pandemia da COVID-19 era a maior crise desde a 2ª Guerra Mundial, um evento disruptivo que remetia para grande incerteza e para a necessidade de uma resposta forte e eficaz, apenas possível em solidariedade se todos se unissem e se os jogos políticos fossem esquecidos, porque era a humanidade que estava em jogo. Noutras circunstâncias, desde o dia 24 de fevereiro de 2022, também a humanidade e o mundo como o conhecemos estão em jogo. Aos desafios prementes como as alterações climáticas e a recuperação pós-pandemia vem juntar-se uma guerra convencional na Europa com consequências globais (económicas, políticas, geopolíticas) e, desde logo, humanitárias, e com ela a incredulidade, a incerteza e a inquietação.
O ataque militar sem precedentes da Rússia (uma potência nuclear) à Ucrânia, um país soberano europeu, põe em causa uma ordem internacional que tínhamos como garantida, em que a invasão de um país europeu era impensável, não sendo impossível. Neste sentido, recorde-se que Vladimir Putin criou importantes precedentes na Crimeia e no Donbass (Ucrânia) e antes na Geórgia, violando a integridade territorial e a soberania destes países. Somou-se depois a concentração de tropas russas junto à fronteira ucraniana durante meses a fio, o uso dos migrantes como arma de pressão contra a Polónia e os países bálticos, as campanhas de desinformação e propaganda russas com claros objetivos de minar as democracias e dividir os Estados-membros, sem contar com o problema da dependência energética em relação à Rússia, tudo elementos que parecem explicar uma estratégia mais alargada para desestabilizar a UE e os seus membros, assim como a NATO.
A invasão da Ucrânia constitui, assim, um momento de viragem, quer na história da Europa, quer na história mundial e coloca-nos novamente, enquanto humanidade, perante o desígnio e um desejo profundo de alcançar e construir a paz. Traz-nos à memória os esforços criadores dos pais fundadores do projeto europeu que, tirando as lições das causas que tinham levado à guerra, ousaram e trabalharam de forma incansável para a realização da paz e estabilidade na Europa. Também hoje será necessário ousar, ser criativos na medida dos perigos que ameaçam a liberdade, a paz e a estabilidade na Europa.
Perante os limites de uma resposta militar, do exterior (NATO), a uma potência nuclear, e da paralisia do Conselho de Segurança, o principal responsável pela manutenção da paz e segurança internacionais, devido ao veto russo, a resposta fez-se (e continua a fazer-se) através de outras formas. Três semanas após o início do conflito, ainda sem fim à vista, há elementos que evidenciam um processo rumo à comunidade internacional:
- a condenação internacional da Rússia, patente na aprovação da Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas por 141 países (mais 41 países que na Resolução sobre a anexação da Crimeia), 5 votos contra e 35 abstenções, que, não sendo punitiva, tem poder moral;
- as múltiplas reuniões de emergência no âmbito das Nações Unidas, da NATO, da UE, do G7, que evidenciam a importância do multilateralismo, da diplomacia e da cooperação na gestão das relações e dos conflitos entre os Estados;
- as tentativas diversas de desescalada do conflito, como as vozes morais quer do SGNU, quer do Papa Francisco; ou do Secretário-Geral da Nato, Jens Stoltenberg, afirmando que a NATO tem a responsabilidade de garantir que o conflito não se espalhe além da Ucrânia;
- os múltiplos esforços diplomáticos para um cessar-fogo, a oferta de mediação internacional, e o facto das partes estarem a negociar, apesar dos poucos avanços, à exceção da abertura de corredores humanitários;
- a abertura de dois processos de crime internacional contra a Rússia (no Tribunal Internacional de Justiça) e contra Putin (no Tribunal Penal Internacional), que evidenciam a preocupação com a justiça e os direitos humanos;
- a solidariedade internacional visível na mobilização e no apoio à ajuda humanitária à Ucrânia e aos já mais de três milhões de refugiados, e a tantos outros deslocados internos, destacando-se o papel da sociedade civil;
- a opinião pública internacional favorável à paz, em especial nas democracias, à qual os governos não são indiferentes, explicando mudanças na política externa impensáveis há semanas atrás;
- as manifestações antiguerra por todo o mundo, para além do apoio simbólico, sinalizam a ação transnacional que não deixa a questão sair da agenda política internacional, pressionando governos e outros atores a adotarem decisões assertivas, mesmo que muitas delas (sanções) impliquem custos acrescidos, como o aumento do preço dos combustíveis ou dos bens alimentares;
- a resistência civil na Ucrânia e os protestos dos russos nas principais cidades da Rússia, exemplos da resistência não-violenta, da resiliência e heroicidade, ilustram outras formas de resposta (corajosa) à agressão, que não deve ser subestimada.
Todos estes sinais positivos são indicadores daquilo que a política pode e não pode fazer, do que é justo e do que não é, de que é possível responder de forma normativa aos problemas difíceis do mundo real. Um conflito não é apenas combatido com a força bruta, há também a força moral. É muito importante que a pressão dos cidadãos sobre os governos, bem como sobre as grandes marcas e empresas, não esmoreça, até que seja possível conseguir uma solução negociada e a paz prevaleça. Porque o que está em causa é muito mais do que um povo e a sua liberdade de escolha: é a liberdade e a paz de todos e de cada um de nós.