Para a mentalidade europeia, o recurso à guerra como arma política parecia impensável. Na cabeça da elite russa continua a prevalecer a conceção de Clausewitz de que “a guerra é a continuação da política por outros meios”.
Talvez a incredulidade com a possibilidade de uma guerra na Europa, juntamente com a garantia de proteção dos EUA, esteja na origem de uma certa secundarização dos temas de defesa e segurança nos países da UE. Porquê investir em exércitos e armamento se a guerra é uma coisa abstrata ou apenas possível em destinos remotos?
O projeto europeu foi, afinal, concebido para assegurar uma paz duradoura na Europa. Funcionou de tal forma bem que nem nos lembrámos que a guerra podia vir de fora.
Mas eis que a invasão russa da Ucrânia criou uma nova realidade. Acordámos. Em menos de uma semana a UE evoluiu mais na sua posição em temas de defesa e segurança do que nos últimos 30 anos.
Quebraram-se tabus. Não podendo assistir impávidos a tão brutal agressão, muitos países europeus não hesitam agora em fornecer armas à Ucrânia, alguns abandonando posições de neutralidade históricas. A Alemanha anunciou a duplicação do orçamento militar já este ano. A NATO reforçou as tropas nas bases mais próximas da fronteira Leste.
Ainda em novembro, o Alto Representante para a Política Externa, Josep Borrell, mostrava ambição ao propor uma “Bússola Estratégica” para a UE, incluindo uma força de reação rápida com 5.000 militares para intervir em situações de urgência.
Com tão reduzida dimensão, não seria, evidentemente, uma força de defesa europeia, mas uma resposta limitada para situações como a proteção ou evacuação de europeus num teatro de operações específico. A lição do Afeganistão, onde, após a saída dos militares norte-americanos, a UE não era sequer capaz de manter o controlo do aeroporto para assegurar a saída dos seus cidadãos, tornou evidente a necessidade de alguma capacidade militar. Se a UE quer ser um ator global, não pode estar absolutamente dependente dos EUA.
Apesar de alguns países, em particular França, disporem de meios militares significativos, a incapacidade de coordenação faz com que o conjunto da UE seja inferior à soma das partes. É o inverso da sinergia; em termos de militares, o funcionamento da UE tem gerado entropia.
Mas nos últimos dias o mundo mudou. Por isso a Europa está a mudar, ao confrontar-se com as consequências da ameaça russa renascida. Mas muito mais estará em jogo.
As instituições multilaterais onde a Rússia tem veto e a Europa não tem sequer voto, as organizações de defesa onde outros pagam e por isso mandam, os esforços diplomáticos e as decisões de segurança que são ainda dos Estados e não dos europeus, a voz europeia no Conselho de Segurança da ONU ainda mais diminuída pelo Brexit, a Organização Mundial de Comércio que não funciona. Tudo isto tem que ser repensado.
Poderemos enfrentar todos estes desafios sem discutir a questão da unanimidade nas decisões de política externa? Talvez… A última semana deixou algumas pistas interessantes e a cooperação reforçada já foi utilizada noutros momentos com sucesso. Mas a resposta a esta pergunta é pelo menos incerta.
O discurso refundador de Olaf Scholz no Bundestag e a dimensão das sanções aprovadas ao nível europeu foram respostas à altura do abalo sísmico da invasão russa.
Mas as perguntas são mais que muitas: a Europa que durante anos não foi capaz de construir uma solução comum para a crise de refugiados ou para a dependência energética externa vai agora solucionar rapidamente uma crise muito mais grave, e pelo caminho estabelecer um caminho eficiente de segurança e defesa comum que nos torne mais respeitáveis no quadro da NATO e no contexto global?
Num futuro que não pode ser adiado, a UE tem mesmo de construir uma verdadeira autonomia estratégica.
A pandemia tinha tornado evidente essa necessidade. Primeiro não havia máscaras na Europa; depois veio a disrupção das cadeias de fornecimento globais, que levou a muitas falhas de abastecimento e aumentou exponencialmente o custo dos transportes marítimos. Agora, a falta de chips faz parar as fábricas automóveis e outras; a Rússia pode fazer chantagem com a interrupção do fornecimento de gás.
Em setores críticos para a nossa vida e economia, a UE precisa de diminuir a dependência de atores externos, muitos dos quais adversários das democracias liberais.
A guerra da Rússia na Ucrânia marca definitivamente a mudança para novos tempos. Adaptemo-nos rapidamente ao novo paradigma.