Opinião

Deus escreve direito por linhas tortas

Deus escreve direito por linhas tortas

A surpresa da maioria absoluta socialista e as outras vitórias e derrotas, no balanço eleitoral feito por José Miguel Júddice

A maioria absoluta do PS foi uma grande surpresa.

Durante muito tempo eu achava, e várias vezes aqui disse, que a estratégia de António Costa era vencer as autárquicas e depois gerar uma crise para alcançar a maioria absoluta em eleições antecipadas.

Ainda pensei que, devido à errada estratégia orçamental do BE e PCP, e à fraqueza de Rui Rio isso era provável, mesmo com um resultado nas autárquicas que politicamente fragilizou o PS.

Confesso que – como creio que também ao Primeiro-Ministro – as sondagens me iludiram e há uma semana estava convencido de que embora improvável era possível a vitória da Direita.

Vejamos então porquê as coisas foram como foram e como o Deus das eleições escreveu direito por linhas tortas.

GRITAR QUE VEM AÍ O LOBO: ÀS VEZES RESULTA…

António Costa ganhou as eleições com maioria absoluta, sobretudo porque conseguiu disseminar uma narrativa na última semana eleitoral que foi de uma eficácia brutal: se o PSD ganhar as eleições, com o Chega e IL com mais deputados do que o PCP e o BE, a Direita terá maioria e o próprio PSD quer atacar os mais desfavorecidos (pensões de reforma, segurança social, reduzir o IRC para os patrões e não o IRS para os trabalhadores).
Mas dizer isto não bastava. Era necessário – e foi feito com eficácia – martelar que o Chega e o IL iriam colonizar o PSD, o primeiro com propostas racistas, xenófobas, fascistas, e o IL destruindo o Estado Social, acabando com o salário mínimo, reduzindo as pensões e governando para os milionários.

Se esta narrativa vencesse na esquerda da Esquerda, como venceu, era inevitável que o pavor fizesse crescer a votação no único líder capaz de enfrentar essa “tragédia”, ou seja deslocar o voto para o PS.

O que era evidente: quando numa casa se instala o pânico de um inimigo externo, ninguém hesita em pedir proteção ao mais forte, mesmo que não goste dele. Foi o que aconteceu.

A ESQUERDA RADICAL MAIS ESTÚPIDA DO MUNDOO

PCP, o BE e os media e intelectuais próximos deles, andaram mais de 2 anos a falar do horror que era o Chega e mais recentemente do risco horrível que era o IL (ainda no domingo à noite na SIC Francisco Louçã, sem se rir, afirmava que a IL era mais perigosa para a democracia que o Chega) e pagaram o preço.

Este discurso, repetido à saciedade como se de uma guerra civil se tratasse, era difícil de inverter num mês. E, tomados por um fervor de quem sonha com barricadas (“não passará” disse Costa a Ventura, afinal falando para a sua Esquerda), os herdeiros de Lenine, Estaline, Trotsky e Mao, a entoar canções heroicas, caíram na armadilha que lhes preparara António Costa.Mas foi pior ainda, o que me leva a duvidar que no Mundo haja esquerda radical mais estúpida: depois de fazerem o favor a Costa de recusar o Orçamento mais à esquerda desde 1975, cometeram alegremente o erro de considerar que o pobre Rui Rio era um perigo para a Democracia e se ganhasse iria dar o poder ao Chega ou mesmo à IL.

É verdade que Rui Rio é impreparado, inadequado, intolerante, lamentável em muitos aspetos. Mas também é verdade que nunca o PSD teve um líder tão posicionado no Centro-Esquerda, que tão vocalmente se afastasse da Direita, que tão disponível estivesse para aguentar um governo minoritário do PS.

A única estratégia possível do PCP, do BE e da intelligentsia que se mexe nessas áreas, era denunciar a estratégia de Costa, “proteger” o PSD, afirmar que não havia qualquer risco de ele fazer aquilo que Costa durante a brutal semana passada martelou, desvalorizar o “papão” do Chega e IL e colocar a maioria absoluta como o único real risco.
Mas isso exigiria planeamento, subtileza, inteligência tática, visão prospetiva, e não a fixação em barricadas virtuais, cantos heroicos, luta de classes e desejo de destruição da “burguesia”, como se estivéssemos noutras eras e noutras geografias.

Mas também era preciso que o PSD ajudasse. E não ajudou, como veremos.

O SUICÍDIO POLÍTICO DO HOMEM SEM QUALIDADES

Rui Rio chegou bem à pré-campanha, com dinâmica de vitória, com o seu partido unido, esteve de um modo geral bem nos debates.

Mas há um problema: é evidente que Rui Rio não tem as menores qualidades para ser Primeiro-Ministro e que nunca ganharia estas eleições.

Fui muito criticado à Direita por dizer isso e também por ter dito que – com todos os seus defeitos, e durante 6 anos não me poupei a criticá-lo – preferia Costa a Rio como Primeiro-Ministro.

Mas quem tivesse dúvidas da inadequação de Rio bastaria ter ouvido a lamentável forma como o suposto líder da oposição falou no domingo à noite. Mas há, evidentemente, mais.

Rui Rio foi destruído por António Costa na passada semana, mais propriamente nos últimos dias da campanha em que os indecisos estão finalmente muito atentos. E ajudou militantemente à sua própria destruição. E por várias razões.
Em primeiro lugar por não ter nenhuma estratégia, ou pior ter duas incompatíveis que ia alternando:

(i) tornar o PSD num partido de Centro que puxasse o PS para a Direita, como defendiam os que perderam em 1978/9 para Sá Carneiro, e

(ii) ser o líder da Direita e comandar uma maioria de deputados, como fizera Sá Carneiro.

Esta flutuação seria sempre fatal, mas pior ainda na atual conjuntura eleitoral:

a) para se posicionar no Centro (sendo uma espécie de PS mais diluído, como referi há tempos) tinha de apostar em não propor mudanças e com isso arriscar enfrentar os partidos de Direita e desiludir os seus eleitores;

b) mas para ganhar as eleições tinha de falar para os eleitores do CDS, IL e Chega que -aí as sondagens não se enganaram – valiam cerca de 15% dos votos, para os seduzir para o voto útil e com o bónus de que assim mandariam Costa para casa.

Esta hesitação bipolar abriu um buraco em que se afundou, pois permitiu consolidar a narrativa “anos 30” da frente antifascista que abriu as trincheiras onde Costa (seguramente “com um sorrisinho nos lábios”…) deixou que o BE e o PCP se enterrassem julgando que defendiam o socialismo e a liberdade quando apenas defendiam a maioria absoluta do PS.

A falta de estratégia e as hesitações foi má. Mas pior foi a infantil convicção de que iria ganhar as eleições, a euforia que o levou para a estrada das graçolas … que ainda mais assustaram a Esquerda, pois esta as lia como sinal de autoconfiança e de que os acordos com o Chega estavam feitos.

E, cereja no bolo, a espantosa amorfia com que (não) reagiu à brutal e vocal campanha do PS para atrair indecisos, optando por manter reuniões temáticas (!), falando do gato e – maravilha das maravilhas – fechando a campanha na tarde de 6ª feira para poder ir descansar para casa e deixando as três televisões toda a noite a transmitir Costa…

MARCELO, MARCELO, ONDE ESTÁ A TUA VITÓRIA?

Os derrotados são óbvios. E Marcelo? Não é um derrotado na estratégia das eleições antecipadas. Afinal não ficou tudo na mesma e essa era a sua aposta e a sua necessidade. E seguramente ficou menos mau do que estava.
Mas o resultado não foi o que ele antecipava e ainda menos o que desejava. O Presidente queria a vitória do PS, isso sempre me pareceu óbvio, até porque conhece muito bem Rio e sabe que ele não seria adequado a governar Portugal. Mas não queria a maioria absoluta.

Todos os presidentes querem deixar uma pegada na História. A dimensão da vitória socialista torna-o irrelevante, a menos que decidisse tornar-se uma força de bloqueio e assumir a liderança da Direita. Ele não vai evidentemente fazer isso. E ainda bem.

Mas o resultado disso é que não vai nunca ficar na História como o Presidente da República que queria passar a ser, tendo de se resignar a não ser mais do que Presidente-Rei, papel em que é capaz de ser excecional. E, claro, usar a sua popularidade para limitar os inevitáveis abusos que vêm sempre com o poder absoluto.
Não é tudo. Não é muito. Mas podia ser pior se tudo tivesse ficado na mesma.

ANTÓNIO COSTA: FORÇA E VONTADE PARA SER REFORMISTA?

Agora, António Costa vai estar connosco mais 4 anos, tornando-se o Primeiro-Ministro da Democracia mais tempo em funções.

Tem poder para fazer quase tudo. E tem o dever e a responsabilidade de conseguir.

Em minha opinião, a sua principal missão tem de ser a modernização de Portugal no caminho do crescimento económico em justiça social, invertendo a tendência em curso de deslizar para a cauda da Europa.

Para isso tem acima de tudo de ser capaz de enfrentar os grupos de interesse, incluindo os sindicais, profissionais e empresariais, ventilando a sociedade e reforçando a concorrência.

E não o conseguirá fazer sem formar um excelente Governo, em que a qualidade prevaleça sobre a fidelidade, e em que a escolha não seja feita para comprar apoios de grupos.

Precisa de fazer reformas profundas na Saúde, na Educação, na Formação profissional, na Fiscalidade, na criação de uma cultura aberta ao investimento e à criação de riqueza.

A minha grande dúvida não é que ele opte por se arrastar penosamente 4 anos (ou até menos se em final de 2024 a Europa irresistivelmente o chamar…).

O que temo é que já não tenha forças nem energias para enfrentar os desafios, os bloqueios, as greves, a agressividade dos media, comentadores e sobretudo da opinião pública.

Fazer as reformas essenciais é enfrentar os poderes estabelecidos e afinal criar mais liberdade, mais concorrência, mais transparência, apostar no futuro e não viver do passado.

Para isso terá contra si todos os grupos organizados e a seu favor os cidadãos menos organizados. A balança não é politicamente favorável fora das eleições.

Temo que não seja capaz ou não tenha força para arriscar. Mas acho que merece que lhe seja feita confiança, esperando pelos sinais principais que serão:

a) A composição do Governo;
b) As nomeações para as entidades reguladoras;
c) O programa de Governo;
d) Os orçamentos para 2022 e para 2023.

Ou seja, se não for antes, saberemos até ao final de 2022. Esperar 10 meses, para quem espera há décadas, não é muito…

O ELOGIO

A António Costa. Sempre disse que era o melhor político da sua geração. Mais uma vez o demonstrou.
Não é um político consensual, é irritante, arrogante, frio e oportunista. E tem outras caraterísticas que também são desagradáveis.

Mas é melhor do que os rivais, eles próprios também cheios de defeitos, mas com menos qualidades.

LER É O MELHOR REMÉDIO

Hoje no Público, Boaventura Sousa Santos, desfez definitivamente o que ao final do passado domingo restava de Catarina Martins.

O título do artigo é “Obviamente, demita-se!”

Boaventura é muito inteligente, muito radical e eleitor do BE. Não é preciso gostar dele ou concordar com o que defende, para perceber o seu grito de alma perante um suicídio que dura há 2 anos e contra a tentativa de esconder debaixo do tapete e continuar tudo na mesma.

A PERGUNTA SEM RESPOSTA

Dei-me ao trabalho de ir rever os resultados das sondagens com que fomos beneficiados na última semana da campanha e a forma como foram tratadas nos media.

Não quero deter-me nas conclusões caricatas, como, por exemplo, segundo uma delas em 28 de janeiro o PSD ganharia em 11 dos círculos eleitorais e segundo outra em 25 de janeiro o IL tinha 2,85% e era ultrapassado pelo PAN!
Basta-me recordar os empates técnicos entre PSD e PS que duraram até ao período de reflexão.

E a pergunta é esta: nós, os eleitores, não merecemos um pedido de desculpas?

A LOUCURA MANSA

No discurso a conceder a derrota, Rui Rio destacou acima de tudo que as contas da campanha eleitoral do PSD estavam equilibradas, como se isso fosse a questão da noite, e respondeu a um jornalista em alemão, talvez a pensar em Rosa Mota.

A loucura não é isto. É que quase 30% dos eleitores aparentemente não se importassem que ele viesse a ser Primeiro-Ministro…

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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