O Governo anunciou ontem um conjunto de medidas no âmbito do controlo da pandemia. Na altura em que escrevo estas linhas não é conhecido o diploma legal que as incorporará mas tão só a mensagem pública do senhor primeiro-ministro e o documento de suporte divulgado. Em ambos é enfatizada a “necessidade” de agravar as coimas a companhias aéreas que não cumpram o dever de controlar a apresentação de teste negativo ou certificado digital pelos passageiros, com a aplicação de coimas que podem ir até €20.000 por passageiro, a par de medidas acessórias como a “perda de licença para voar para Portugal”.
O bom senso ditaria que o anúncio de medidas desta violência fosse suportado por dados sólidos e irrefutáveis, capazes de gerar nos destinatários da mesma e na própria comunidade a convicção de que estas “sanções fortemente agravadas” (sic) são adequadas e necessárias. Sobre o tema, nem uma palavra, uma linha ou nota de pé de página. Isto é ainda mais grave porque os dados de que dispõe a Associação das Companhias Aéreas, face à aplicação do atual quadro legal (coima que pode ir até €2.000 por passageiro), apontam para um grau de cumprimento muito elevado por parte das companhias.
O mesmo bom senso recomendaria que a entidade responsável pelas políticas de saúde pública, que depositou nas companhias aéreas o encargo e o peso burocrático de uma tarefa que é do Estado e que tem que ser suportada pelo Estado, adotasse um comportamento pedagógico, motivador e cooperante. Afinal de contas, está a exigir, sem o remunerar, que funcionários de companhias aéreas que não foram contratados, nem formados para o efeito, desempenhem funções de inspetor do Estado português. E está a punir com coimas brutais potenciais erros humanos, de pessoas que trabalham nos quatro cantos do mundo, que não falam português, que analisam milhares de documentos por dia e que não têm o poder de autoridade do Estado para forçar o inadimplente a cumprir. É este o abono para falhas que o Governo propõe para estes funcionários públicos forçados?
O (des)norte é ainda visível em dois outros pontos salientados na mensagem: na exigência “dupla” de teste negativo e certificado (“A Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia “fará tudo” para que o Certificado Verde Digital – destinado a facilitar a circulação segura e livre na UE durante a pandemia de COVID-19 – esteja concluído até junho”, anunciava o mesmo Governo há seis meses) e nas supostas sanções acessórias de “perda de licença para voar para Portugal” (aqui confesso que não sei a que se refere e como se propõe o Governo implementar a medida, em especial no quadro da União Europeia).
Uma nota final para a absoluta e evidente desproporcionalidade da medida (coima até €20.000 por passageiro, o que num A320 sem estar cheio pode redundar numa coima potencial de 3 milhões de euros). Dispenso-me de entrar na discussão técnica do tema, outros o farão com maior prioridade. Prefiro partilhar a notícia de que o algoritmo do Google me apresentou, lado a lado com a referente ao anúncio desta medida: “A Coreia do Norte condenou à pena capital um homem que contrabandeou e vendeu cópias da série Squid Game”. Não estamos longe.
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