– “Sara, eu já não aguento ter que dar conta de tudo.”
– “E porque deveria, Alice?"
Alice. Chamemos-lhe assim. Nome fictício para a expressão de uma vivência bem real. Às vezes, recebem o “mimo” de serem chamadas guerreiras, mulheres de armas, sem armadura, toureiras (como já ouvi algures), etc., e outros “elogios” bonitos que escondem (mesmo que com boas intenções) o cansaço, a exaustão, a sobrecarga de muitas mulheres (mães, casadas ou solo) que “têm de dar conta de tudo” sozinhas.
Sempre me causou um certo desconforto ouvir de alguém dizer: “fulana foi mãe e pai de sicrano” que sofreu abandono ou desresponsabilização paternos. Isso reforça a ideia de que é possível um lugar dos pais abandonarem os seus próprios filhos, que serão criados por super-mães (ou, como também já ouvi, “pães”…). E assim seguimos adiante sem falar devidamente sobre a realidade destas mães, destas crianças e sobre estes pais irresponsáveis. A maioria simplesmente romantiza a sobrecarga de trabalho e responsabilidade da mãe e de alguma forma aceitam o abando ou a desresponsabilização paternos como algo “normal”.
Se na mãe, de forma geral, já se coloca uma sobrecarga imensa e uma falsa ideia de que ela dá conta de tudo, o que se espera de uma mãe-que-é-pai-e-sabe-se-lá-que-mais? Romantiza-se muito as ausências. Sejam ausências de pessoas, seja de políticas públicas. Quando se elogia, dá-se um nome "fofo" para quem tem que ralar bastante mais não parar e olhar para as ausências e faltas. Sim, por vezes, é mais fácil elogiar e homenagear do que fazer uma análise mais dura, realista e buscar mudar certas e complexas realidades.
Portugal é quinto país da União Europeia com maior impacto da pandemia no mercado de trabalho, tendo sido as mulheres as mais penalizadas. A pandemia de Covid-19 está a aumentar a desigualdade entre homens e mulheres, tanto no trabalho como em casa, tal como mostra um recente estudo do Instituto Europeu da Igualdade de Género. Para além disso, a sobrecarga psicológica afecta mais as mulheres na pandemia, de acordo com outro estudo recente do ISCTE. Já a OMS também alertou para os dados reveladores de que os índices de perturbação mental (ansiedade, depressão, entre outros) que subiram a galope durante a pandemia afectam mais a população feminina. E curiosamente (só que talvez não) li esta semana que no nosso país cresce o abandono precoce do emprego para cuidar de doentes, num fenómeno que (adivinhe!) atinge sobretudo as mulheres e que resulta de custos directos e indirectos elevados devido à falta de verbas para aplicar planos de saúde mental.
As mulheres tiveram que trabalhar, cuidar e ser professoras. No meio disso, ainda é esperado que ajudem os familiares com doença, que não procuram médicos ou profissionais de saúde mental para depressões não tratadas, por exemplo, e tudo isto forma um conjunto de circunstâncias com custos elevados para o sistema.
Muitas “Alices” talvez pouco empoderadas mas sobretudo sobrecarregadas fazem-no sem ajuda da rede escolar, laboral e de apoio. Trabalho acumulado, dúvidas e medos na cabeça o dia inteiro. Já são mais de 500 dias assim, e provavelmente ainda teremos muitos mais pela frente.
Sim, podemos enaltecer as mulheres, as mães que se esforçaram para fazer o melhor possível para os seus filhos e família, mas sem colocar sob a sua responsabilidade todos os papéis.
E além de enaltecer, podemos trazer à tona os motivos estruturais pelos quais os homens ou outras organizações sociais as abandonam, não se responsabilizam, não cuidam, recusam-se a pagar o mínimo de pensão, quando pagam. E tudo isto sem romantizar a sobrecarga materna, por favor.
Temos que parar de romantizar a mãe guerreira. Não é guerreira, é esgotada, esfarrapada, cansada e, por vezes, perdida. Não é um elogio, é uma catástrofe mesmo.
Com isto quero falar de direitos. De invisibilidade. De igualdade e dignidade. De compulsoriedade no maternar. De violências diversas que sofremos. De superar esta pandemia mais rapidamente pelo incentivo à reflexão de temas difíceis mas necessários, pelo estímulo à co-criação de comunidades e sociedades mais igualitárias e justas que nos beneficiarão a todos. Com isto quero falar também de resiliência. Não vou romantizar uma maternidade explorada, abandonada e ultraresponsabilizada, de maneira nenhuma.
Só que seria injusto não falar de como resistimos no meio do caos. De como muitas de nós encontraram algum alento na escuta atenta de outra mãe ou de outra mulher, ou de uma profissional. De como muitas de nós descobrimos a nossa força, ainda que não seja justo gastar toda a nossa força a ter de lidar com sofrimento.
Eu falo de saúde mental, de ética e respeito, de estruturas violentas, de patriarcalismo entranhado na sociedade, por si, por mim. Não há maneira de trazer uma vida melhor para as crianças que não passe por buscar uma vida melhor para as mulheres mães.
O discurso que enfatiza a luta, a dedicação eterna para conquistar os objectivos é cruel porque para determinadas pessoas, a única opção é ser forte. Mas não deveria ser assim. As mulheres desempenham vários papéis impostos pela sociedade e ainda têm a sua humanidade negada, pois são consideradas (mas nem por isso devidamente valorizadas) como heroínas incansáveis.
Para conquistar um objectivo (seja ele de saúde, paz, justiça, equilíbrio pessoal, prevenção do burnout, pela saúde mental) é preciso tomar uma decisão pelo caminho que se quer escolher e isso significa compreender como é que você se sente diante da encruzilhada, e escolher, mesmo que isso implique abandonar os “elogios”, as “palmadinhas nas costas” certo tipo de “aprovações” ou condescendências, resignações no caminho não escolhido ou de fase ultrapassada.
– “Mas, Alice, e tem certeza do caminho que quer tomar?”
– “Mais ou menos.”
ou relembrando uma outra Alice:
– "Para onde vai essa estrada?", perguntou ela. –"Para onde queres ir?", retorquiu o Gato. – “Eu não sei, estou perdida.” – "Para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve", disse-lhe ele.
O dualismo do "mais ou menos", do "talvez", do “não é bem assim”, ou do “é mesmo assim”, conhecido popularmente como "ficar em cima do muro". A vida é feita de decisões e a primeira decisão pode ser justamente compreender como se sente diante das situações que aparecem.
Entretanto, se o que lê ressoa de alguma forma consigo, sugiro aqui e agora que entre em contacto com a sua raiva. Direccione-a adequadamente, faça algo construtivo com o potencial de energia que ela coloca ao seu dispor. Não segregue, mas antes una-se a outras mulheres para dar um sentido a essas emoções. Escute a raiva milenar das irmãs que tiveram as suas raivas omitidas, silenciadas por séculos. Ame enquanto isso. Caia triste porventura e deixe outras mulheres ajudá-la a levantar-se. Levante-se maior ainda. Somos potência e eu vejo-a. Todos os dias.
As múltiplas jornadas de trabalho da “mulher moderna” afectam directamente a sua vida pessoal, familiar, social, bem como a própria sociedade. Elas sentem-se cansadas, preocupadas e sobrecarregadas, mas possuem uma visão conformadora desta realidade.
A sobrecarga da mulher existe e é cultural, fincada numa cultura que naturaliza a ideologia patriarcal. Quando uma mulher nasce, explícita ou implicitamente, já tem inscrito no seu curriculum que deverá ser ela a cuidadora dos irmãos mais novos, do marido, dos filhos, do cão e do gato, dos vizinhos, tios e sobrinhos, dos pais quando envelhecerem, e do “mundo” em geral.
Os cuidados com a família tradicionalmente têm sido relegados à mulher porque é uma função subalterna e acessória que dá suporte ao homem para desempenhar o seu papel no trabalho formal, de cujo papel seria de provedor do lar. Mesmo que os homens já não sejam mais os únicos provedores do lar e que elas tenham que sair de casa e cumprir o mesmo papel que eles no serviço formal, as actividades do lar e família continuam relegados a ela.
O mundo mudou muito, mas a mentalidade não avançou e continua-se a formar mulheres com esta cultura, que introjectam esta hiperresponsabilidade de cuidar e ser perfeita nos cuidados, mas ninguém é perfeito (para além de que o “ingerenciável” como o próprio nome indica, não dá para gerenciar…) e daí decorre a geração da culpa e o sentimento básico, comum a muitas Alices, de que “sinto-me sempre em dívida” ou simplesmente “não sou suficiente”.
Então, Alice, você deveria carregar tudo nas costas ou esta é uma mentira que lhe contaram desde que você nasceu para que aceitasse docilmente esta condição exaustiva que lhe causa mal-estar e a impede que se dedique à busca do seu prazer e realização?
Os jovens entre os 16 e os 24 anos e as mulheres, como antes referi, foram os que tiveram a saúde mental mais afectada durante a pandemia de Covid-19, tal apontam os dados da OMS. Da mesma forma, o mesmo organismo de saúde apontou que as mulheres ficaram mais ansiosas boa parte do tempo durante a pandemia. Também houve um aumento acentuado no uso de medicamentos psicofarmacológicos para estas faixas populacionais. Portugal é um país que desde o início da pandemia disparou nas taxas de internamentos psiquiátricos, no consumo de psicofármacos, no abuso de substâncias, no crescimento alarmante da violência doméstica. Com um índice, à escala mundial, de pessoas ansiosas e deprimidas muito acentuado, este quadro no nosso país só piorou desde o início da pandemia.
Sem o apoio de políticas públicas ou privadas, e muitas vezes sem o apoio dos homens da família e do pai da criança, as mulheres estão adoecidas.
A ausência de um trabalho em equipa (com o empregador que auxiliasse mais este processo em face às exigências desta exigente realidade ou com companheiro com quem divide a relação afectiva, na divisão das tarefas domésticas) aumenta o stress, faz do burnout não somente uma “buzzword” dos tempos actuais, mas algo cada vez mais real, condiciona a sobrecarga física e emocional e acaba por directa ou indirectamente trazer transtornos psíquicos e, muitas vezes, a somatização de doenças.
A “mulher moderna” na sua dupla e até tripla jornada (trabalho no mercado formal, trabalho no lar, cuidar dos filhos, familiares, etc.) vive permanentemente à beira de um colapso, afinal, é preciso ser de aço (que não somos, ninguém é) para aguentar tamanha sobrecarga. A sociedade incita – para não dizer exige – da mulher esta postura ao mesmo passo que tende a desresponsabilizar os homens pela sua parte na manutenção das tarefas domésticas, o que gera em muitas mulheres o sentimento nosso de todo o santo dia de culpa (por "não dar conta"), cansaço e preocupação.
Cuidar da casa, dos filhos, trabalhar fora e ainda ter de estar impecavelmente vestida, calçada, penteada, maquilhada, exercitada, depilada, com o cabelo, as unhas e a pele perfeitamente arranjadas, é tarefa que leva à exaustão. Em nome do respeito pelos nossos limites físicos e mentais, não raras vezes ignorados, vamos aprender a dizer não?
E não, eu não estou a pedir para sermos tratadas como frágeis, coitadas ou desventuradas, que irão atirar tudo pela janela, estou aqui apenas para pedir mais respeito, empatia, acolhimento e compreensão.
Porque, Alices do meu país, não são vocês que não dão conta, é esta cultura que nos sobrecarrega.
Acolhamos mais e julguemos menos as mulheres que estão a passar por esta fase difícil, ou melhor, as mães, de uma maneira geral. Só quem está dentro da situação sabe o que aguenta ou não fazer e o que dá conta ou não de elaborar. Diante de uma mãe exausta, não ofereça conselhos, ofereça duas mãos para ajudar ou dois braços para abraçar. E para as mães que assim como eu, que mesmo ao fim de 5 anos de maternidade, se sentem ainda a passar pela crise existencial de uma eterna “fase de adaptação” da dinâmica familiar, deixo aqui minha solidariedade, a minha sororidade e um pedido para que você (e eu) se culpe menos e entenda que dá e sempre deu o seu melhor, o seu possível. O possível, não o perfeito. E isso é o suficiente.
(Apenas ressalvar que se estivermos a falar da exaustão no contexto de uma depressão clínica ou depressão pós-parto, trata-se de um transtorno sério, importante, que deve ser tratado como tal, por isso deve ser procurada ajuda de um profissional para a ultrapassar).