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Opinião

Pessoas e maçãs

Detive-me no gesto do proprietário do pomar ao deitar a maçã inadequada ao chão. Vivemos mergulhados no seu pragmatismo prepotente

Os Respigadores e a Respigadora”, de Agnès Varda. Agarrando uma maçã acabada de colher, o proprie­tário de um “pomar paradisíaco” afirma: “Esta maçã é como uma pessoa que não é nem bonita nem inteligente. Valor comercial: zero” — e atirou-a ao chão, num gesto brusco. Depois, Varda encontra um homem que se assemelha àquela maçã e mete conversa com ele. Respiga fruta e verduras nos mercados, após os vendedores irem embora. Tem um mestrado, estudou biologia, é vegetariano. A sua ocupação é vender jornais e revistas na rua. Num plano ventoso, Varda mostra-o à entrada do metro, durante o dia, a vender revistas. As pessoas passam por ele e ignoram-no. É uma pessoa inadequada ao comércio. O filme vai em busca daqueles que, estando à vista, ninguém vê. Varda interpela-os, mostra-se curiosa, vai ver quem são e onde vivem. É preciso procurá-los, respigá-los, quase persegui-los, porque as pessoas que não vemos têm horários próprios, hábitos estranhos, segredos. Chegam depois de nos termos ido embora, no fim das colheitas ou no fim do mercado. Recolhem os despojos da festa no fim da festa. Vivem em esconderijos. A câmara de Varda busca-os, buscando-se. Ir ao encontro dos outros é ir à procura de si mesma. No seu encalço, a respigadora encontra-se nos respigadores. Varda vê-se ao espelho. O seu cabelo encaneceu, as mãos estão enrugadas. Também a respigadora é sobra de uma colheita.

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