Opinião

Ano letivo arranca com falta de professores... e de psicólogos escolares

A saúde psicológica escolar está diretamente relacionada com uma educação de qualidade e perpassa pelas diferentes dimensões do processo educativo, desde a gestão da escola, passando pelo currículo e metodologia de ensino, à formação dos agentes educativos. É, por isso, fundamental a intervenção dos psicólogos escolares na saúde psicológica escolar

Nos últimos dias, têm sido várias as notícias que dão conta de que o novo ano letivo arrancou com falta de professores e funcionários. Após uma conferência de imprensa no Porto, Mário Nogueira, Secretário-geral da Federação Nacional dos Professores, garante que este ano foram contratados menos 710 professores do que no ano passado e que as escolas começaram este ano letivo com menos 140 professores. Infelizmente, num contexto tão relevante como é o escolar, não são apenas os docentes e os funcionários que estão em défice, faltando também os psicólogos escolares, cujo papel é há muito desvalorizado.

Apesar da paulatina e faseada evolução registada, a realidade aponta para um número insuficiente de psicólogos nas escolas, tendo em conta a responsabilidade e centralidade que as boas práticas e os novos desafios educativos de autonomia, inclusão e promoção do sucesso educativo exigem.

O rácio recomentado pela National Association of School Psychologists para a prestação de serviços compreensivos e de qualidade em psicologia escolar são de 1 psicólogo para 500 a 700 alunos, longe do registado em Portugal em que cerca de 61% dos psicólogos escolares da rede pública referiram ainda ultrapassar o rácio 1 psicólogo para 1000 alunos (rácio proposto pela Ordem dos Psicólogos Portugueses). É sabido que rácios mais elevados tendem a favorecer padrões de prática profissional menos desejáveis e vice-versa.

De salientar que, desde o ano-letivo 2013/2014, o reforço do número de psicólogos nas escolas tem sido em parte realizado à custa da contratação de profissionais a tempo parcial, numa situação que reduz o tempo de trabalho dos psicólogos escolares para apenas 18 horas semanais.

A maioria dos psicólogos escolares referiu ter sob sua responsabilidade um agrupamento de escolas ou estabelecimento de ensino não-agrupado, um cenário agravado nos últimos anos, em particular no ensino público, onde a partilha de técnicos especializados por unidades orgânicas se tornou mais frequente. No caso dos profissionais da rede pública que exerciam funções em agrupamentos, os psicólogos escolares relataram servir em média 10 estabelecimentos de ensino dispersos geograficamente, podendo a amplitude deste número variar entre 2 e 38 escolas. Esta é uma realidade que, claramente, contrasta com a encontrada no ensino privado, onde os psicólogos escolares raras vezes têm a sua atividade profissional dispersa por mais do que um estabelecimento.

Esta variabilidade não só é reveladora de uma assinalável falta de equidade nas condições de funcionamento dos serviços de psicologia e orientação como das oportunidades de acesso a serviços de psicologia escolar, dentro e entre os subsistemas de ensino público e privado. Ao contrário do que seria desejável, o acesso a serviços de psicologia escolar parece estar dependente do nível socioeconómico das famílias. Ou seja, estamos longe de compreender os serviços de psicologia escolar como veículos de justiça social, cuja ação deve priorizar a mudança do sistema escolar como forma de garantir essa mesma justiça para todos os alunos.

Importa que a leitura dos rácios tenha também em consideração outras variáveis, tais como os níveis de abandono, insucesso e/ou desistência na escola e na região; o contexto social e desempenho dos agrupamentos e escolas; as taxas de sucesso escolar, prosseguimento de estudos, reorientação, desistência de alunos; o nível de envolvimento do serviço de psicologia e orientação no tecido económico, social e cultural.

Para os menos familiarizados com o tema e para que se perceba a relevância deste assunto, sintetize-se que o psicólogo escolar intervém em diversas questões relativas à escola, aos processos educativos e ao desenvolvimento dos seus atores, promovendo o processo de ensino-aprendizagem e o sucesso educativo de todos os alunos.

Os seus eixos de atuação podem abranger a promoção do sucesso escolar e da realização académica (por exemplo, apoiar as escolas a promover a motivação e envolvimento dos alunos, a individualizar o ensino e a intervenção), o apoio à heterogeneidade das necessidades educativas da população escolar (por exemplo, desenvolver serviços para alunos e famílias de diferentes backgrounds socioculturais), o reforço das parcerias escola-família (por exemplo, auxiliar as famílias no entendimento das necessidades educativas e de saúde psicológica dos alunos), a promoção do comportamento positivo e da saúde psicológica (por exemplo, avaliar as necessidades dos alunos, promover competências sociais e de comunicação), a melhoria dos sistema de avaliação e de prestação de contas de toda a escola para monitorizar o progresso dos alunos no domínio académico e comportamental (por exemplo, recolher e analisar informação acerca de fatores de risco e de proteção relacionados com os resultados dos alunos), assim como a promoção de ambientes escolares positivos, seguros e de suporte (por exemplo, prevenir comportamentos de risco, o bullying e outras formas de violência, avaliar e melhorar o clima de escolar, investir na aprendizagem socioemocional).

Os psicólogos escolares preocupam-se com a ciência e a prática psicológica junto das crianças, jovens e famílias, alunos de todas as idades e com o processo de escolarização, estando preparados para intervir tanto a nível sistémico como individual. Entre os públicos-alvo da intervenção destes profissionais estão, segundo o Perfil dos Psicólogos da Educação avançado pela Ordem dos Psicólogos Portugueses, os alunos de todas as idades (mesmo pré-escolares), famílias e encarregados de educação, profissionais de educação e outros técnicos especializados, serviços e estruturas da comunidade e a sociedade no sentido mais amplo.

Mais especificamente, ao utilizarem os seus conhecimentos nos domínios da aprendizagem, do comportamento e da saúde psicológica para apoiar os alunos a serem bem-sucedidos no plano académico, socioemocional e comportamental contribuem significativamente para uma agenda educativa e uma escola bem-sucedida, isto é, aquelas que incluem a promoção das competências sociais e emocionais dos jovens, da sua saúde mental, enquanto fundamentos da personalidade saudável e do envolvimento cívico.

Sucede que a saúde psicológica escolar está diretamente relacionada com uma educação de qualidade e perpassa pelas diferentes dimensões do processo educativo, desde a gestão da escola, passando pelo currículo e metodologia de ensino, à formação dos agentes educativos. É, por isso, fundamental a intervenção dos psicólogos escolares na saúde psicológica escolar.

A investigação demonstra que a avaliação custo-benefício é francamente positiva, no âmbito da intervenção psicológica nas escolas, alcançando resultados estáveis e duradouros no desenvolvimento saudável e bem-estar das crianças, jovens e restante comunidade escolar.

Face ao exposto, não se percebe por que motivo se assiste a uma falta de clareza das políticas públicas referentes à psicologia escolar e não existe um investimento estratégico no inestimável contributo destes profissionais, que foram sucessivamente contratados como docentes de técnicas especiais com salários que não ultrapassavam o dos professores em início de carreira, bem como não possuíam qualquer oportunidade de progressão profissional.

Como mais um claro sinal de desrespeito para com os psicólogos escolares e com consequências para a comunidade escolar, tenha-se presente que não obstante o Decreto-Lei n.º 190/91 de 17 de maio instituir que os psicólogos afetos dos serviços de psicologia e orientação seriam providos em lugares de carreira, a criar no prazo de 90 dias, após a sua publicação, tal só aconteceria cerca de seis anos mais tarde, com a publicação do Decreto-Lei n.º 300/97 de 31 de outubro.

De facto a Ordem dos Psicólogos Portugueses tem investido na colaboração com os vários ministérios e entidades da administração pública, sendo que relativamente ao Ministério da Educação salientem-se os esforços no sentido de pugnar pela adequada cobertura da rede escolar em termos de serviços de psicologia e orientação, zelar pelo exercício profissional da psicologia escolar em condições adequadas, alertar e intervir perante a possibilidade de usurpação de funções dos psicólogos por profissionais não qualificados e defender a habilitação dos psicólogos para a docência da disciplina de psicologia no ensino secundário, que incompreensivelmente continua entregue a licenciados em Filosofia.

Como alerta o livro A prática profissional da Psicologia Escolar, publicado pela Ordem dos Psicólogos Portugueses, desde 2007, a contratação de novos psicólogos pelas escolas públicas passou a correr numa base anual em regime de contrato de trabalho a termo resolutivo certo. Com efeito, o Ministério da Educação oferece aos psicólogos escolares uma estrutura provisória de inserção no sistema, com vínculo precário de contratação e nenhumas expectativas de progressão na carreira. Este sistema de contratação tem sido, e bem, fortemente contestado, sobretudo por favorecer uma leitura da intervenção psicológica como uma necessidade temporária do sistema educativo.

Acresce que o sistema de contratação ao ser gerido pelas próprias escolas, que possuem autonomia no processo de seleção e recrutamento dos candidatos a concurso, nem sempre tem garantido que os profissionais no terreno possuem o perfil de formação e a experiência profissional mais adequada ao conteúdo funcional de psicólogo escolar.

Merece menção a natureza avulsa e relativamente dispersa com que os serviços de psicologia e orientação e/ou os psicólogos escolares foram sendo referidos nos vários normativos publicados, após o Decreto-Lei n.º 190/91 de 17 de maio, e de como os papéis e as funções que por lei tem sido atribuídas a estes profissionais, não raramente, continuam a perpetuar uma conceção tradicional e limitadora da intervenção psicológica em contexto escolar.

Fica aqui claro que o contributo da psicologia escolar vai para além das avaliações de orientação escolar e profissional dos alunos no 3º ciclo ou secundário, devendo assumir também um modelo de atuação mais preventivo e promocional. Perante a escassez de meios e a complexificação dos problemas sociais a que a comunidade escolar não é alheia, é importante que se perceba que o sucesso educativo se encontra dificultado perante a carência de psicólogos escolares. A falta de consolidação e revitalização de políticas públicas relativas à prestação de serviços de psicologia escolar e à carreira dos psicólogos escolares, bem como a parca integração dos psicólogos no sistema educativo resultam numa ausência, ou défice como preferirem chamar, que trará consequências para o seu filho, para a escola do seu filho e, mais cedo ou mais tarde, para a sociedade.

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