Para quê singularidade se podemos ser todos clones?
Todos nós, em muitos momentos, somos marionetas do meio em que vivemos, a diferença está em conseguir ou não ver as cordas
Todos nós, em muitos momentos, somos marionetas do meio em que vivemos, a diferença está em conseguir ou não ver as cordas
Como psicóloga, uma das coisas que mais gosto de fazer é facilitar processos de individuação (processo que significa tornar-se um ser único, alcançar uma singularidade profunda, tornando-nos o nosso próprio Si-mesmo). Na verdade, a intervenção psicoterapêutica é “apenas” a melhor ferramenta que encontrei para isso.
Nós, enquanto profissionais da relação de ajuda, sabemos como ninguém o quão difícil é as pessoas tomarem decisões de maneira autêntica. Afinal, todos nós estamos demasiadamente acostumados a REAGIR diante das situações de vida e não a AGIR, isto é, DECIDIR.
O ritmo frenético da rotina é um convite sedutor para aderirmos aos modelos e guias “infalíveis”, às “fórmulas mágicas” e ao “manual básico e altamente definitivo” (hein?!) sobre como se tornar bem-sucedido, equilibrado, saudável, feliz, pleno, vegans, yoguis, paleos lowcarb, minimalista, zero waste, etc., etc., etc. Afinal, quanto mais rápido “eu” chegar lá, melhor. E nada mais justo aderirmos a estes ‘atalhos’, não é verdade?
O que acontece é que, muitas vezes, a maioria de nós segue à risca os “modelos socialmente louváveis” e posteriormente percebe que está a viver a vida de outra pessoa. Ou seja, tomou mais decisões de vida ligadas aos valores e princípios de outras pessoas do que com os seus próprios valores.
Permita-me a pergunta: a sua visão de mundo é mesmo sua?
Hoje faço minha uma pergunta de Fernando Pessoa, perdida algures no tempo (e algures num livro que puxei aleatoriamente da minha estante) mas sempre intemporal: “Conhece alguém as fronteiras da sua alma, para que possa dizer - EU SOU EU?”
Praticamente toda a espécie humana está hipnotizada pelo senso comum, pois a maioria pensa o que lhes disseram para pensar.
Por vezes acontece estarmos tão siderados a dançar o “passo” que nos foi ensinado, que nos mantemos anos em determinada coreografia, sem conhecer de facto o nosso próprio ritmo.
Todos nós, em muitos momentos, somos marionetas do meio em que vivemos, a diferença está em conseguir ou não ver as cordas.
As minhas provocações psicológicas do dia:
- Quem ou o quê está a reger a sua vida hoje?
- Você mesmo(a) ou a opinião dos outros?
“Eu” posso olhar para uma montanha e dizer: “Que montanha linda". Alguém que está ao meu lado, ouve-me a dizer isto, também olha para a montanha e diz: “Que montanha feia”. Como pode ser assim? A montanha é a mesma, uma pessoa diz que ela é linda e outra diz que ela é feia.
A questão de ser belo ou feio está na montanha ou está em quem olha para a montanha? É claro que aqui a questão não é a montanha e sim a percepção que cada pessoa tem do mundo à sua volta, ou seja, as nossas crenças, aquilo que absorvemos dos outros, os nossos padrões e condicionamentos, o nosso humor e muitos, muitos outros factores, é que irão fazer-nos perceber algo como “bom” ou “mau”, “bonito” ou “feio”, por exemplo. Tudo isto não é assim tão óbvio, mas é algo que a maioria das pessoas vive durante as 24 horas do dia sem se dar conta.
E como é que tudo isto pode prejudicar um ser humano?
Prejudica de várias formas mas principalmente nas decisões (conscientes e, em especial, as inconscientes) que uma pessoa toma durante a sua vida e que, por não estarem devidamente verificadas e “actualizadas” à luz de si própria, lhe poderão dar prejuízo emocional, financeiro ou de relacionamentos.
De forma geral, ao longo das nossas experiências de vida, verificamos que é depois de se passar por fases mais difíceis (por exemplo, o fim de um longo relacionamento, alguma perda significativa, financeira, o desemprego, algum problema de saúde, etc.) que surge uma vontade de recomeçar. Em todos os sentidos.
(Parêntesis breve: se assim for, que maravilha!). Este impulso é vital, sendo na essência a própria vida a impulsioná-lo… Nos tempos que correm, vida nova é a palavra de ordem. E se for para viver, que seja com conteúdo, não? Troque o verbo, mude a frase, inverta a culpa e vamos a isso.
A sua vida é isso mesmo: sua. E a história que fizer dela também o é. Melhore aquele capítulo, recorte daqui para pôr acolí, deite fora o que não precisa mais, desafie a tristeza e o medo, aceite-se e aos seus “erros” e reescreva-se, republique-se… reinvente-se. Para quê permanecer uma “cópia” se você nasceu um “original”? Que tal transformar-se na melhor edição (revista e aumentada) de si mesmo(a)?
O facto é que toda a dor e sofrimento tendem a devolver-nos impagáveis lições. E um crescimento que nos torna mais experientes, mais preparados, e um potencial acrescido de podermos vir a ser mais felizes. E esta é a ideia por detrás de todo e qualquer processo de “reinvenção” pessoal. Isto é, abarcar com as duas mãos (e os braços, se preciso for) tudo o que foi aprendido nos últimos tempos, desejar fazer melhor desta vez, e enfim, agendar para breve uma (re)estreia de si mesmo(a) digna de tapete vermelho, plumas e ovações no final!
Mas depois de fazer este planeamento, conferir a logística, confirmar os intervenientes, acertar datas, lembre-se do principal: que este recomeço não pode acontecer da noite para o dia ou com apenas desejos lançados ao ar. A película do filme que tiver criado só conseguirá angariar o necessário ‘patrocínio’ se estiver total e necessariamente alinhada consigo, com a sua essência, com quem você realmente é.
Porquê? Já se havia esquecido? Sim! Que outro maior e importante ganho depois das ‘cacetadas’ da vida é adquirirmos uma maior consciência de quem somos (e de quem não somos), dos nossos valores, e de onde de facto nos revemos e queremos chegar. E outra coisita mais: de uma maior noção do quanto merecemos ou fizemos por merecer. Quando isto acontece de pronto estamos em condições de descobrir o quanto temos feito por merecer. Pois, não basta “acreditar” que merece. É preciso fazer por merecer (e acreditar (sem aspas) mesmo que é legítimo merecedor). Acredita?
O ano de 2020 ficará marcado para sempre, por vários motivos que bem sabemos. 2020 foi o ano para saber quem REALMENTE SOMOS. Actualização profunda de identidade, a partir da qual a criatividade pode florescer e manifestar nova vida. Temos ainda algum tempo para investir neste processo com todo o ser.
2021, e os anos seguintes, serão os anos para construirmos um estilo de vida, enraizado nessa autenticidade. Nesses valores, afectos, relacionamentos que verdadeiramente nos espelham.
Quem não estiver alinhado com o Tempo, vai receber o fruto da sua indefinição, passividade, inconsciência, desamor.
Quem tem olhos, veja; quem tem ouvidos, escute. Quem tem alma, vibre!
Quase toda a gente pode aprender a pensar, a acreditar, a saber, mas nenhum ser humano pode ser ensinado a sentir. E porque? Porque no que quer que acredite, pense ou ache que saiba, você é um mar de gente, mas no momento em que sente, você não é ninguém mais, ninguém menos do que você mesmo(a).
Num futuro próximo (que já existe, mesmo ao virar da esquina) permeado por ominipresentes processos e automatizações, as competências comportamentais, sociais, emocionais, enfim, humanas farão toda a diferença.
Alguma vez já sentiu aquele desconforto de saber que não foi autêntico(a) nas suas acções ou escolhas? Especialmente, quando deu por si sob o “jugo” de um momento mais exigente ou desafiador na vida?
Provavelmente, todo(a)s nós já passámos por isso. O desalinhamento das nossas acções, palavras ou decisões com os nossos valores e propósito de vida acarreta, desde um desconforto ligeiro a estados duradouros de depressão, ansiedade e até alienação.
A autenticidade é uma procura, resultante de uma jornada de busca pelo auto-conhecimento, o (re)alinhamento entre mundo interno e o externo e a lealdade a si mesmo(a).
Por isso, para se reconectar com a própria identidade, hoje deixo-lhe aqui algumas dicas. Pegue numa caneta e tome nota.
1) Observe e expresse as suas vontades, necessidades, os seus desejos e prazeres.
Quando escolhe algo de acordo com o que está alinhado com a sua essência única, você sente diferentes tipos de prazer (na essência, todos eles pertencentes à “família” do sentimento/emoção de alegria): realização pessoal, gratidão, amor, capacitação, superação, encantamento, etc.
Seguir o seu prazer vai mostrar-lhe a sua própria essência e também vai cortar o cordão umbilical com os factores ou as pessoas com comportamentos tóxicos que fomentam o seu mal-estar e estagnação, uma vez que a sua individualidade (saudável) vai tornar-se uma ameaça.
2) Observe as suas dores e as experiências repetitivas.
Quando você tem sempre os mesmos desafios, é porque muito provavelmente ainda não aprendeu alguma habilidade ou lição que a vida quer que aprenda para que você consiga sentir mais realização pessoal, a partir do desenvolvimento de um “self” emocionalmente mais autónomo e estruturado.
Ao observar as coisas que não estão a correr bem na sua vida, você percebe tudo o que não quer. A partir desta informação você pode perguntar-se:
- “Se eu não quero isto, o que quero então?"
Deste modo, você está apto(a) a identificar o seu desejo que, como vimos atrás, reflecte a sua essência e a sua identidade. Ao aprender a lição ou habilidade que o desafio traz, você expande o seu repertório de acções, de capacidades e desenvolve os seus recursos internos e personalidade. Tenha presente que conhecer-se cada vez mais e melhor pode ser uma aventura curiosa, não precisa ser angustiante.
Comprometa-se com a sua história, com a identificação e reconhecimento da sua própria “impressão digital”, única e intransmissível (indivisível, individual) com o seu sucesso e a sua realização. Envolva-se com este período inédito e extremamente positivo por que passamos, em que o próprio mundo se está a reinventar. Foque as possibilidades, as portas e janelas e tudo o que lhe acrescente ou complemente de recursos necessários para fazer o (bom) caminho da individuação psicológica e da autonomização emocional. Baixe o volume da cacofonia dos velhos hábitos vazios e repetidos ad nauseam, porém que não o(a) ajudam a chegar a lugar algum, dos movimentos, frases, jeitos e trejeitos, crenças, opiniões regurgitados pelos outros mas que adopta como se fossem seus, das fórmulas instantâneas cujo destino é só morrer na praia, das declarações frigoríficas de mecanismos robóticos que lhe garantem ao serão a já costumeira insatisfação, decepe num lance de espada heróica os veios e os bloqueios dos seus medos paralisantes, os obstáculos inventados (antes, reinvente-os). No fundo, um certo ‘culto’ das dificuldades que tanto lhe têm servido, até hoje, para o manter no cómodo lugar de vítima das circunstâncias.
Saiba que sair desta posição, por mais que nos ponha à prova, é que nos dá a verdadeira gratificação. A coragem será garantidamente uma necessidade, mas as recompensas da mesma são certamente a (sua) Felicidade.
Sara Ferreira é Psicóloga Clínica, formadora e autora, e membro efectivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses.
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