– “Tenho aproveitado para cuidar de mim, da minha saúde física e mental, dos meus filhos, e deixar a ansiedade um pouco de lado", diz-me uma pessoa a propósito daquilo que considera estarem a ser os efeitos positivos da pandemia na sua vida. “Se para muitos esta está a ser uma experiência terrível, para mim está a trazer coisas óptimas”.
Por incrível que pareça a muitas pessoas, desde que o distanciamento social começou, ela diz que já sentiu diferença (para melhor) no corpo e na mente. Em face às notícias sobre jovens e adultos (e adultos cada vez mais jovens) em estado grave com a Covid-19, ela decidiu não parar de fazer a sua actividade física preferida e com isso ainda pôde aproveitar para dar uma melhorada na sua alimentação. Tal como ela, muitas pessoas, sobretudo as dos grupos de risco da Covid-19, têm enfrentado grande medo e ansiedade a cada notícia ou informação nova sobre a doença. No entanto, e para além de tudo isso, tem-se confrontado com a mais desconfortável das sensações: a culpa.
E ela, mesmo não querendo ou percebendo o porquê deste sentimento por vezes ser tão recorrente (sobretudo quando sente estar a fazer algo de bom para si), não deixa de o sinalizar como um dos bloqueadores mais incisivos da sua qualidade de vida, no geral, e, inclusive, no seu bem-estar pessoal.
A culpa é frequentemente usada como ferramenta de “educação” e condicionamento emocional, sobretudo em pessoas com uma vivência no contexto de ambientes familiares mais difíceis ou tóxicos. Por detrás desta culpa existe uma crença, que é: "tens de colocar os outros em primeiro lugar, não tu.”
Este é um ensinamento incorrecto. Todo o ser vivo tem direito de (e deve se quiser sobreviver) viver para satisfazer as suas próprias necessidades. Isso não é nenhum crime.
Um ser humano que pausa regularmente para reflectir sobre as suas necessidades, e que acha formas de satisfazê-las, sente satisfação, e isso transcorre para a sociedade. Ele convive bem com os outros e gera uma experiência social benéfica para todos.
Um ser humano que aprendeu que os outros são mais importantes, acumula relacionamentos abusivos, ressentimentos e fica doente.
– “Dra. Sara, sinto-me com culpa quando estou alegre por algum motivo corriqueiro no meio desta pandemia...”.
Decifrando a pergunta por detrás deste tipo de afirmação: como pode lá ser isso de uma pessoa sentir alegria no meio do caos?
Resposta curta: pode e deve. Como? Pelo seguinte.
Os seres humanos não são um 'monobloco' que sente apenas um tipo de emoção, somos múltiplos e cheios de facetas. Quantas vezes já não sorrimos de saudade num velório, ou ficámos tristes numa festa de ano novo?
Se todos os eventos felizes “só” nos deixassem felizes ninguém ficaria estranho no Carnaval ou macambúzio numa saída à noite, ou algo melancólico(a) quando o(a) melhor amigo(a) arranja um(a) namorada(o). E porquê? Explico.
Não é o evento externo que determina as nossas emoções, mas o significado que atribuímos a ele, e ao que aconteceu. O riso é a manifestação de leveza da nossa mente, é quando somos “apanhados” de surpresa por uma situação inusitada, incomum ou até trivial, quase como um raio de gáudio súbito, o que nos desconcerta tanto…
Sim, somos capazes de olhar as coisas no seu todo e em partes e experienciar afectos distintos (positivos OU negativos, positivos E negativos, como posinegativos (!), esta não é uma nomenclatura oficial, fui eu mesma que agora inventei) dependendo de onde os nossos olhos pousam.
Em relação a esta pandemia que estamos a viver, quando olhamos para o todo podemos sentir a tristeza pelas mortes, a dor dos vulneráveis e o medo por todo o lado. Mas nem sequer isso implica sentir sentimentos (passo a redundância) totalmente assépticos, filtrados, como que um leite pasteurizado, pois a partir de uma situação dura e difícil também pode surgir apoio, cuidado, amor, ternura, carinho ou riso (e processar tudo isso ao mesmo tempo não o(a) faz ser maluco(a)).
Quando olhamos para o todo e para as partes, é possível termos recortes de realidade distintos, sendo que não há mal nisso, não perdemos a nossa humanidade. A culpa vem de um tipo de ideia enganosa de que devemos ser “apenas” solenes no meio da dor, sérios como sinal de respeito. Mas isto é diferente do escárnio de quem finge que nada está a acontecer ou que minimiza os factos.
Ter empatia pela dor de alguém (e pela nossa) e também sentir alegria por um qualquer acontecimento pessoal que surge em simultâneo não se chocam.
Então, quando a alegria e o riso surgirem deixe vir, isso é sinal de saúde mental, pois você conseguiu percepcionar um ângulo diferente no meio do caos e dar um novo significado que o(a) refresque e ventile internamente, mesmo que por instantes, sinal aliás da sua própria compaixão.
Se “eu” entro em contacto com apenas um pólo emocional ou de raciocínio, “eu” de certa forma estou a alienar-me, pois não me estou a dar a oportunidade de reflectir e principalmente de comparar e depois, sim, escolher.
Acostumados a enquadrar o mundo num grande esquema de binómios, ao sermos pessoas demasiado “bitoladas” só conseguimos ver a realidade sob a óptica do certo e do errado. Nada mais e nada menos. E com isso as dicotomias clássicas decorrentes e muitas vezes incorrentes de pensamento distorcido / fundamentalista (que levam inclusive à perpetração de toda a gama de atrocidades) do tipo: puro VS. impuro, justo VS. injusto, bem VS. mal, segurança VS. insegurança, limpeza VS. sujidade, punição VS recompensa, eu VS. outro, branco VS. preto, e por aí fora…
Nestes casos, não há meios-termos, paradoxos, contradições aceitáveis ou maneiras pacíficas de administrar a realidade complexa em que vivemos.
Notemos que assim, de repente!, e mesmo sem querermos ou sabermos, adentrámos uma experiência radical, que só pode ser atravessada com muitas forças positivas internas, de entre elas – e na linha de frente – a compaixão, a paciência, a resiliência, a empatia, a tolerância, a solidariedade, etc. etc. etc., ah! e, claro, o amor, e sim, todas elas coexistentes com o medo, a preocupação, a raiva, a angústia, a frustração, e tanto mais.
É óbvio que pode e “deve” sentir alegria se, neste momento, tem saúde, um corpo, uma casa, trabalho, compras da semana asseguradas, comida no fogão. Mas de repente, no meio disso, pode atravessar-nos a lembrança de que muitas pessoas não têm nada disto neste momento. E a nossa autorização de tentarmos ser felizes nos nossos confinamentos, ou coisa que o valha, é abalada. Culpa. De nada serve. Amor sim. A primeira imobiliza. O segundo move (e faz mover).
E precisamos mover-nos. Movimento e desenvolvimento são a essência da vida, este rio que flui incessantemente. E se há coisa que fomos descobrindo então é que sem amar e abraçar todas as coisas não seguiremos, paralisamos no desconforto.
Recomendo que quando se deparar com esses tipos de pensamentos de culpa (também conhecidos como pensamentos negativos automáticos), procure substituí-los por algo mais neutro e adaptativo, como "Eu posso lidar com os sentimentos difíceis que me surgem" ou "Sou capaz de / mereço sentir-se bem comigo mesmo(a), apesar de alguém ao meu redor estar numa fase mais complicada. "
Se você de alguma forma aprendeu que é “errado” viver de acordo com mais leveza, alegria (ou mesmo felicidade!) e de acordo com o que faz sentido para si e sente culpa por tentar ser independente emocionalmente e cuidar da própria vida, aja apesar da culpa. Com o tempo, ela dissipa-se e você observa que, obviamente, é preciso cuidar de si mesmo(a) em primeiro lugar. Não se sinta culpado(a) quando faz algo pela sua sobrevivência: continue.
Tenha o cuidado de diferenciar entre culpa normal, onde você vai contra os seus valores e precisa rectificar, e a culpa tóxica, que é activada pelo simples facto de você satisfazer as suas legítimas necessidades.
E lembre-se sempre de que para qualquer coisa que você precise fazer, você precisa de si mesmo(a).
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