Opinião

Uma lancha que afunda a Marinha

Uma lancha que afunda a Marinha

Paulo Sande

Professor convidado de Ciência Política da Universidade Católica, Instituto de Estudos Políticos

A Guarda vai a banhos

A GNR inaugurou no passado dia 7 de maio a sua Lancha de Patrulhamento Costeiro “Bojador”.

Tratando-se de um meio oceânico, a GNR vê assim concretizada a sua antiga aspiração de se tornar uma espécie de Guarda Costeira. A cerimónia de 7 de maio, que teve lugar no Terminal de Cruzeiros do Cais da Rocha de Conde de Óbidos, chamou-se aliás “O papel da GNR como Guarda Costeira”.

Portugal tem de utilizar com eficácia e parcimónia os escassos recursos de que dispõe. A compra de lanchas com capacidade para navegar no alto mar – capazes de chegar aos Açores e à Madeira, isto é, de cobrir meio Atlântico Norte – é um desperdício de recursos. E constitui, sem dúvida, uma afronta à Marinha portuguesa.

Em suma, mais um sinal da mania de grandezas que o nosso país devia dispensar.

Em 2009, reconhecendo a capacidade da Marinha de prestar serviços em missões de interesse público não militares, a Lei Orgânica da Marinha afirmava a necessidade de ajustar a estrutura da arma, dotando-a “das capacidades adequadas ao exercício das suas competências, respeitando (…) os princípios da racionalidade e da economia”. E na linha da “tradição naval portuguesa” dava-se corpo ao paradigma de uma Marinha “de ‘duplo uso’, materializado numa actuação militar e numa actuação não militar”.

Como objetivo, uma economia de escala e o desenvolvimento de sinergias. Para o efeito foi reformulada a cadeira de comando operacional e definidas as missões de natureza não militar, incluindo o cumprimento da lei nos espaços marítimos sob jurisdição nacional, busca e salvamento e actividades no domínio das ciências e técnicas do mar.

A Marinha, com séculos de experiência e vocação para agir em todos os meios marítimos, dotada dos recursos certos, competência e saber-fazer, deveria assim - pelo menos foi o que se pensou na altura -, cumprir a tarefa de Guarda Costeira. Passaram 12 anos e parece que já não é bem assim. Uma nova estrela, a não tão antiga Guarda Republicana, quer aprender a nadar. Até para um país habituado a mudar leis com frequência, incluindo as relativas aos grandes desígnios nacionais, é um recorde.

E é, sem dúvida alguma, um erro grave.

Um milagre nascido do mar

Portugal, sob tantos pontos de vista, é um milagre. Pela geografia, pela lógica das coisas, a sua mera existência é improvável. Escreveu-o Gomes Eanes de Zurara: “Cá nós de uma parte nos cerca o mar e da outra temos muro no reino de Castela”. E como de Espanha nem bons ventos…, restou-nos, ao longo dos séculos, uma saída: o mar.

Por ele, à aventura em frágeis jangadas de madeira, os portugueses afirmaram uma identidade singular e asseguraram a independência do país, o que só foi possível porque a alma dos nossos egrégios avós, tripulantes desses esquifes de madeira que sulcaram os oceanos do Mundo, não foi pequena. E porque inventámos, antes dos outros povos europeus, a Marinha.

Portugal existe porque a Marinha foi. E é. Em 12 de novembro de 2017, assinalaram-se 700 anos de criação da Marinha portuguesa, por decreto de El-Rei D. Dinis, em 1317. Na ocasião, Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, não tergiversou:

“Somos uma Nação marítima” e “temos de continuar a investir na Armada” porque “esse é o nosso destino”. E a Marinha deve viver, “para que possa viver Portugal”.

Há dias, o primeiro-ministro propôs os Oceanos como desígnio europeu para 2030. Ora tudo começa neste rosto do continente que é Portugal. Que tem (que temos), escusado será lembrar, uma enorme zona económica exclusiva, um mar que é seu; ou seria, deveria ser, se tivesse recursos para o vigiar, patrulhar e proteger.

Que não tem!

E por essa razão também, é incompreensível a instituição da GNR como Guarda Costeira.

Estratégia nacional: navegar é preciso

A estratégia é a arte, assente na visão do que se pretende e no contexto de uma decisão política, de definir o objetivo e os planos que, no conjunto, cobrem todas as contingências e asseguram o cumprimento desse objetivo.

A Portugal tem faltado, com períodos de excepção, um conceito estratégico nacional estável. Isso mesmo afirmou em 2014 Adriano Moreira, para quem esse inexistente conceito deveria assentar na definição prévia dos valores espirituais e materiais que estruturam a identidade portuguesa. Sem entrar no já longo (e algo frustrante) debate sobre o lacunoso conceito estratégico nacional, uma coisa é indiscutível:

Foi no mar, e é nele, que Portugal escora a sua sobrevivência, projeta o seu poder e obtém (ou devia obter) a sua riqueza. Reconhecida a independência em 1179 pela bula papal Manifestis Probatum, o país empreendeu, nos séculos seguintes, a difícil missão de a garantir. Sem poder crescer pela fronteira terrestre, foi no espaço exterior, por via da sua fronteira marítima, sobretudo através do Atlântico, que Portugal se afirmou como entidade política relevante. Já então, como nos séculos seguintes, foi a Armada instrumento decisivo.

Seguiu-se um lento regresso às origens, culminando com a descolonização de 1975. E desde então, penosamente, Portugal tenta actualizar um conceito estratégico nacional que lhe permita – para si próprio, desde logo – afirmar-se como nação independente, relevante e considerada no plano internacional. E se concordo com a falta de visão estratégica, é também certo que várias âncoras permitem vislumbrar os seus possíveis contornos, naquilo a que Adriano Moreira, aliás, chama de “janelas de liberdade”.

A âncora europeia é a nossa pertença à União Europeia; a relação com os países de língua portuguesa, através da CPLP; e o mar. O Mar.

Ora, para o cumprir – e celebrar as “navegações grandes que fizeram” os portugueses, todos nós, e as que ainda poderemos fazer -, é necessária uma Marinha com recursos, capaz de projectar força efectiva e de se impor num ambiente marítimo crescentemente predatório, ainda por cima numa das maiores zonas económicas exclusivas do Mundo. Uma Armada que garanta patrulha, controlos migratórios, fiscalização económica, luta contra a pirataria e os tráficos vários, busca e salvamento, controlo aéreo.

Uma zona económica exclusiva de 1.683 mil km2 e um potencial de 4 milhões de km2 de zonas marítimas nacionais (quando concluído o processo de alargamento da plataforma continental), não se protegem com uma Marinha subdotada. Falta gente (cerca de 800 pessoas, reconheceu o Chefe do Estado Maior da Armada em 2019); o único navio reabastecedor, o Bérrio, foi abatido ao efectivo no ano passado, limitando drasticamente a capacidade operacional; são escassos, para os objectivos referidos, os meios actuais, cuja aquisição, renovação e manutenção é cara, dificilmente comportável por uma economia deficitária e endividada.

E, contudo, a GNR vai ter navios. Super-lanchas, que deverão ser mantidas. Terá de formar marinheiros. De aprender a nadar, o que os da Armada aprendem desde há sete séculos. Tudo isso para missões de utilidade e serviço público que a GNR nunca cumpriu e que a Marinha executa com proficiência e capacidade. O país vai ter de pagar a dobrar o custo do que é singelo.

São vícios de rico.

Mas ainda é tempo de corrigir o tiro.

Antes que a Marinha se afunde.

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