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Opinião

É urgente ter coragem para debater a nossa cultura política

Miguel Poiares Maduro considera que a mediatização do processo Marquês é a consequência de o país não conseguir ter uma discussão política sobre ele independente da justiça.

Desde o início da Operação Marquês que a generalidade do país político recusa discutir a dimensão política do que consta desse processo. A justificação foi repetida logo na sexta-feira pelo Primeiro-Ministro: “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça.” Mas é precisamente o respeito por esta separação que impõe que a política não se “escude” na justiça para evitar a discussão da dimensão política do que o processo revela.

Invoca-se a separação entre política e justiça para, paradoxalmente, promover a judicialização da política. Sempre que uma questão de ética e política também assume uma dimensão jurídica o debate ético e político é reenviado e circunscrito ao que os tribunais vierem a decidir. Por um lado, impede-se qualquer debate político sobre os problemas no sistema político que o processo revele. Por outro lado, reduz-se o juízo ético e político sobre os comportamentos em causa aquilo que mereça sanção criminal. Como o critério de valoração criminal de um comportamento é necessariamente bem mais grave, isto conduz a desvalorizar politicamente comportamentos eticamente reprováveis só porque não são crime. Esta incapacidade de retirar consequências políticas de certas violações éticas acaba por também colocar a justiça debaixo de fogo ao fazer dela a única forma de apurar responsabilidades.

A justiça acaba criticada por não condenar criminalmente certos comportamentos porque se reduziu a possibilidade de os sancionar ao mero domínio penal, não se retirando nenhumas consequências políticas deles. O mesmo se pode dizer quanto à tão criticada mediatização destes processos. Uma vez que é a própria política que limita a sua discussão ao foro judicial, a única alternativa à mediatização deste seria o silêncio... Útil para alguns, mas não aceitável.

A mediatização do processo Marquês é a consequência de o país não conseguir ter uma discussão política sobre ele independente da justiça.

Desde praticamente o início do processo Marquês que insisto na necessidade de fazer esta discussão política, independentemente da avaliação pela justiça dos comportamentos em causa. Sabemos hoje que tivemos um Primeiro-Ministro (e, já agora, também um ministro) que governava sustentando uma vida de luxo com dinheiro entregue por um amigo empresário com ligações a vários interesses económicos. Um Primeiro-Ministro que recebia e fazia pagamentos com malas de notas. Dos factos resulta também uma teia de interesses privados e agentes públicos, em que decisões públicas de enorme importância foram tomadas num contexto de acesso privilegiado ao poder por esses interesses. Tudo isto está estabelecido. É independente da avaliação de corrupção e branqueamento de capitais que o próprio Juiz Ivo Rosa entendeu existir, de forma limitada, e que os tribunais superiores podem ainda vir a fazer de forma mais alargada.

Tudo isto exige uma discussão e consequências políticas.

O que é que na nossa cultura política permitiu que isto acontecesse? Como foi possível um Primeiro-Ministro (e pelo menos um outro membro do governo) receber tais somas de dinheiro e fazer pagamentos regulares em notas sem que ninguém desse conta? Como era possível fazer uma vida não compatível com os seus rendimentos sem isso ser escrutinado, política, judicial, mediaticamente? Todos nos lembramos de que existiram, ao tempo, alguns magistrados e jornalistas que tentaram investigar aspetos opacos da vida do então Primeiro-Ministro. Mas também nos recordamos de que a reação política e de que uma parte da magistratura então o impediu. O que é que isso nos diz sobre os riscos existentes na relação entre poder político e magistratura ou poder político e comunicação social?

Alguns também se recordarão dos conflitos que o então Primeiro-Ministro teve com os poucos reguladores que tentaram preservar a sua independência e os factos, entretanto conhecidos, revelam a proximidade que o PM estabelecia com os reguladores. Esta proximidade entre reguladores e poder político que mediava, por sua vez, uma proximidade com o poder económico tem de nos fazer repensar como garantir a sua independência face aos poderes político e económico.

A perigosa proximidade ao poder conseguida por esses interesses económicos também só é possível pela confusão, na nossa cultura política, entre Estado e poder político.

Podemos discordar sobre o peso que o Estado deve ter na nossa economia e sociedade. Mas não devíamos permitir o peso que o partido político no poder consegue ter no Estado. É essa associação que enfraquece e atemoriza a nossa sociedade civil e o escrutínio que esta devia impor sobre o poder. Qualquer um teme que contrariar esse partido seja abrir um conflito com o Estado.

José Sócrates pode ter sido quem mais explorou este receio, mas não é o único. Enquanto essa confusão existir, o risco permanece.

Por último, o caso de José Socrates interroga-nos também sobre a capacidade de seleção e fiscalização dentro dos partidos políticos. Um dos méritos atribuídos à democracia representativa, e à importância que nela têm os partidos, ao contrário da democracia direta, é que estes constituem, supostamente, um mecanismo de seleção e filtragem, impedindo o aparecimento e acesso ao poder de personagens mais perigosos. Não foi isso que aconteceu. Esta é, em primeiro lugar, uma reflexão que se impõe ao Partido Socialista. Como foi possível “produzir” e apoiar um tal líder político? Mas que também deve envolver os outros partidos políticos. No meu, tenho alertado, com outros, para a necessidade de reforçar os mecanismos de controlo de integridade e ética do próprio partido.

Ainda mais que questionar o nosso sistema de justiça, a operação Marquês questiona a nossa cultura política. É altura de ter coragem de fazer este debate. Se a classe política continuar a evitá-lo os portugueses acabarão por substituir esta classe política. No entanto, sem mudar a cultura política, nada nos garante que os novos políticos sejam melhores.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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