O espetáculo que pudemos ver esta sexta-feira e as reações que se seguiram geraram-me algumas perplexidades que partilho convosco.
Comecemos pelas reações. As que me chamaram mais a atenção foram as de quem ficou alegre com o desfecho e com o facto de Sócrates não ter sido acusado por corrupção. É natural que alguém que fosse apoiante de Sócrates e das suas políticas e que o considere um injustiçado fique contente ao vê-lo ilibado das principais acusações. É bom sabermos que alguém que apreciamos afinal está inocente. O problema é que o juiz não disse isso. O juiz criticou a acusação por incompetência e, mesmo assim, declarou que José Sócrates era corrupto e que recebeu milhões de euros indevidamente. Ou seja, o regozijo destas pessoas não se deve ao facto de terem visto um político que admiravam ser inocentado. O regozijo deve-se ao facto de terem visto José Sócrates safar-se de alguns dos crimes que terá cometido.
No outro extremo, chocaram-me as reações contra o juiz Ivo Rosa. Por muito convencidos que estejamos da culpabilidade de Sócrates, e eu estou, a verdade é que não conhecemos o processo para saber se o mesmo está devidamente fundamentado, se respeitou todas as formalidades e se a acusação está bem formulada. Neste momento, com a informação que existe, não está posta de parte a hipótese de ter havido uma brutal incompetência do Ministério Público. Teremos de esperar pelo resultado do recurso para o Tribunal da Relação para o saber. Para exigirmos responsabilidades, temos de saber quem é o responsável. Para já, tanto pode ser o juiz Ivo Rosa como pode ser o Ministério Público como pode ser a nossa legislação (ou a nossa cultura judicial), que protegerá de forma absurda os altos prevaricadores (basta lembrar a incapacidade de criar o enriquecimento ilícito como figura penal).
Deixei para o fim o que mais me incomoda. Para já, 90% das acusações iniciais foram à vida. Todos sabíamos que algo de parecido ia acontecer só por lá termos Ivo Rosa a decidir. Também temos consciência de que, se o juiz fosse Carlos Alexandre, 90% das acusações seriam confirmadas. Perante os mesmos factos, o mesmo processo e a mesma acusação, a sorte de um arguido é diametralmente oposta caso calhe com um juiz ou com outro. Isto faz do tribunal um jogo de sorte ou de azar, o que não é admissível.
É evidente que cada juiz terá sempre a sua visão da justiça e que haverá sempre alguma discricionariedade que lhe permite ajustar-se ao caso concreto. Mas, quando as diferenças são tão gritantes, deixa de ser um poder discricionário para passar a ser um poder arbitrário.
E não se pense que esse é um problema específico deste tribunal. É generalizado. Por exemplo, e podia facilmente dar outros, em processos de divórcio, os advogados já sabem que, se o juiz for um, então o pai nunca terá hipótese de ficar com a criança, mesmo que prove ter sido sempre um cuidador extremoso, e que, se for outro, então o juiz praticamente obrigará à guarda partilhada e residência alternada, mesmo que, hipoteticamente, haja fortes indícios de violência doméstica. Nos tribunais, decide-se a vida das pessoas. As sentenças não podem ser jogos de sorte ou de azar.
Uma nota final: se tudo ficar como está, José Sócrates ainda pode passar uns bons anos preso; já as acusações a Ricardo Salgado, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro caíram todas.
PS: Um amigo chamou-me a atenção para um erro factual no meu texto. Ricardo Salgado irá a julgamento por crimes de abuso de confiança. Ainda assim, teve um dia feliz.
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