Opinião

A propriedade intelectual farmacêutica e a importância para a saúde pública

A evolução das leis internacionais de propriedade intelectual, especialmente as relacionadas com patentes, são responsáveis pelo aumento progressivo das salvaguardas que têm vindo a garantir uma aliança mutuamente benéfica entre a indústria farmacêutica e a sociedade. O advogado Gonçalo de Sampaio, Agente Oficial da Propriedade Industrial, escreve sobre “a propaganda em torno da ´quebra' das patentes da vacina para a covid-19”, quando... “ainda não há patentes”

O título e a introdução deste texto foram reescritos a partir de artigos assumidamente contra o sistema de Propriedade Intelectual que têm sido publicados, na grande maioria, por dirigentes do Bloco de Esquerda. A desinformação, quando emitida por organizações políticas com representação parlamentar, faz caminho no espaço público, eco na opinião e espalha-se rapidamente. Ao longo dos últimos dois meses, assistimos a esta coisa espantosa por parte do Bloco de Esquerda que foi a criação de um inimigo que não existe e a declaração de um combate sem tréguas a esse mesmo inimigo. Não fosse grave, e seria hilariante. Toda esta propaganda em torno da “quebra”, ou “libertação” de patentes, no espaço europeu e/ou nacional respeitantes às vacinas para a Covid-19 e – espanto dos espantos – ainda não há patentes. Sim, leu bem: ainda não há uma única patente concedida às vacinas que estão a ser utilizadas para imunizar a população no espaço europeu! Talvez, num cenário muito otimista, no final deste ano a primeira patente possa ser concedida. E, fica a pergunta: porquê este discurso de Portugal “quebrar” patentes antes, sequer, de negociar com as empresas que estão hoje a produzir as vacinas? O horror ao capital é assim tão forte que dispensa conversa? Lidar assim – de forma violenta e coerciva – com entidades que estão a contribuir decisivamente com talento, inovação e ciência para combater a pandemia parece só absurdo, despropositado e sem sentido.

Invoca-se o investimento público no desenvolvimento da vacina. Percebo o argumento, embora muitos dos números apresentados sejam pouco exatos. Mas, esse investimento público, poderia ter garantido 2 opções: uma cotitularidade da patente (porque não se precaveu essa possibilidade?) ou uma mais forte capacidade negocial na aquisição das vacinas (incompreensível que não tenha sido feito de forma mais evidente). Parece que a incompetência e impreparação, no passado recente, dos líderes europeus legitima o “vale tudo” no presente.

Todos já percebemos que o que está, verdadeiramente, em causa, não é a propriedade intelectual, não são as patentes, mas sim a capacidade de produção da vacina. E, já agora, uma produção segura. Aceder, hoje, à fórmula da vacina (não confundir com a patente) não oferece qualquer garantia de capacidade segura de produção. Quem a poderia fabricar, por exemplo, em Portugal? Quem estaria disponível para parar toda a sua produção e reconvertê-la para a produção de vacinas? E quanto é que isso custaria? Também nacionalizaríamos essa empresa? E em que momento é que as nacionalizações já teriam sido suficientes? E quando teria essa vacina luz verde das autoridades de saúde para ser usada?

Esta ação de propaganda pode parecer “simpática de ouvir”, mas é claramente secundária face ao que realmente interessa discutir em termos de propriedade industrial, nomeadamente, na perspetiva da economia nacional. Se aqueles que atacam o sistema de propriedade industrial precisam de uma causa real e palpável, sugiro que se foquem no acordo assinado por Portugal para a adesão ao Sistema de Patente Europeia com Efeito Unitário e ao Tribunal Unificado de Patentes. Ratificado por Portugal, à pressa e sem razão, em 2015, o sistema ainda não entrou em vigor, mas Portugal continua incapaz de defender os seus interesses. Um Sistema que vai multiplicar por mais de cem (leu bem, 100) vezes as custas judiciais – criando um obstáculo de facto no acesso à justiça a dezenas de milhares de PMEs – e que vai pôr fim ao português como língua de inovação. Um Sistema que vai permitir aos grandes utilizadores do sistema de patentes que, sem nenhum custo, garantam, por 20 anos, o monopólio no mercado português. Um Sistema que vai resultar na atribuição de mais de 160 mil monopólios por ano em Portugal (contra os atuais cerca de 5 mil), limitando fortemente a liberdade de atuação das empresas nacionais. Um Sistema que afasta as PME, favorecendo as grandes empresas. Um Sistema que já viu países como Espanha, Polónia, Croácia e Reino Unido saírem, para proteger as suas empresas e economia. Um Sistema que irá condenar a capacidade de inovação das empresas portuguesas nas próximas décadas. Um Sistema que ataca o princípio fundamental dos direitos de propriedade industrial: equilíbrio e contrapartidas.

E, perante este ataque à economia nacional, assiste-se a um silêncio envergonhado das entidades públicas nacionais. Da Presidência da República ao Governo, passando pelos partidos políticos e Parlamento, assobia-se para o lado, procurando ignorar o que irá acontecer. Porque é mais mediático gritar contra as “patentes” do que defender a economia nacional, procurando salvaguardar o seu lugar no mercado da inovação.

Aqui sim, temos um tema que causará grandes danos à economia nacional. Mas este, se calhar, porque é real e péssimo para as empresas e para o capital, não interessa combater…

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