Opinião

Dos esquecidos nas listas de Marta Temido

Em dezembro passado, uma semana depois de Marta Temido garantir que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) contactaria todos os cidadãos “elegíveis para a vacinação”, numa reunião conjunta com a Comissão Parlamentar de Saúde e a Comissão Eventual para o acompanhamento da aplicação das medidas de resposta à pandemia da doença covid-19, um casal de idosos morria por asfixia, em Valverde, concelho de Almeida, devido a uma braseira a carvão, colocada no quarto, durante a noite, para se aquecerem.

Não há qualquer enviesamento ao fazer-se a junção destes dois acontecimentos, cuja única coisa em comum parece ser tão-só o de terem ocorrido no mesmo mês. A notícia da causa da morte daquelas duas pessoas – recorrente todos os invernos, basta consultar uma base de dados sobre o assunto – galgou a memória quando esta semana, as rádios davam voz à Ministra da Saúde: “Mesmo quem não tem médico de família pode ter do seu médico particular uma declaração que as considera elegíveis para vacinação. Foi durante a visita que fez, na companhia do primeiro-ministro, à Unidade de Saúde Familiar Alvalade e Parque, em Lisboa, que agora iniciou a administração da vacina contra a covid-19, que Marta Temido anunciou aquela possibilidade destinada a quem não tem vaga no seu centro de saúde. Até porque a ministra garantiu ter conhecimento de que, há uma semana, “havia já três centenas de pessoas que tinham este documento”.

Assim dito, tudo parece muito fácil. Todavia, a responsável pelo SNS não explicitou em que circunstâncias ocorreu a busca daquela solução, avançando com aquele número como se fosse expressivo, a nível nacional, e sem indicar as ações necessárias subsequentemente, para aqueles trezentos cidadãos acederem à injeção atualmente mais desejada. Marta Temido terá ainda esquecido que a atual situação de pandemia aumentou mais de 45 por cento o número de portugueses sem médico de família definido, o que fez subir significativamente o número de utentes do SNS nesta situação para mais de 950 mil…

Sem desejar-se agora averiguar e reivindicar a legislação sobre o acesso aos cuidados do SNS, incluindo o direito a um médico de família, não é impertinência perguntar: toda esta multidão terá de acorrer em busca de um consultório médico privado para solicitar a tal declaração?

A partir daqui as questões levantam-se em enxurrada, numa urgência inquieta, tanto mais que o momento de vacinação agora reagendado pelo Governo inclui as pessoas com mais de 80 anos, pelo que será oportuno recordar o que Marta Temido afirmou na reunião, em dezembro, com as duas comissões parlamentares. Ao ser confrontada pela deputada Ana Rita Bessa, do CDS/PP, sobre a possibilidade de alguém não ser chamado pelo respetivo centro de saúde. “Como utente, tive essa experiência, mas estamos a melhorar”, argumentou a ministra, elucidando de imediato a deputada: “Quem não for contactado, poderá contactar o SNS, essa é sempre uma possibilidade".

Sempre a descomplicação. E sem quaisquer dúvidas! Aliás, Marta Temida já nos habituou às suas verbalizações simplistas e dogmatizantes, como quem diz: não está a ver qual é solução? É muito compreensível: telefona-se para o SNS e, de imediato, alguém nos sussurrará, ao ouvido, uma série de informações, fáceis de executar, e que só um cidadão com falta de discernimento não conseguirá compreender e levar a cabo.

Reflexões sadias e venturosas assaltam-nos a mente perante declarações tão precisas e facilmente concretizáveis da ministra da Saúde! Não fosse conhecer-se os dramas de quem está há 3 anos à espera de integrar lista de um médico de família por o seu se ter reformado ou, ainda, de quem anda há uma década a solicitar o direito a ter um clínico fixo, para não ter de sempre que se desloca a uma consulta ter de enfrentar um diferente…

Por isso, à afirmação de Marta Temido na Unidade de Saúde Familiar Alvalade e Parque, há que fazer o exercício de retorquir com consistência, colocando questões práticas. O sítio de internet do SNS, no PowerPoint do Plano de Vacinação Covid 19, ainda ativo, no que respeita à identificação e listagens de utentes, refere que aos Agrupamentos dos Centros de Saúde serão disponibilizadas a identificação e listagem daqueles cidadãos. Isto quer dizer que os portugueses sem médico de família atribuído (cerca de um milhão), mas que já tenham, alguma vez, recorrido a uma “consulta aberta” estão contemplados naquelas listagens? Ou, por outro lado, terão de inundar os centros de saúde onde estão inscritos para indagar se devem, ou não, recorrer à declaração do médico privado? É que naquele mesmo sítio de internet do SNS informa-se que as listagens são aferidas através do cruzamento de um conjunto de Serviços de Saúde, entre os quais “o sistema de cuidados de saúde primários”, aquilo que vulgarmente se chama de centro de saúde.

Talvez todos aqueles utentes do SNS possam dormir descansados, todavia. É que ainda na segunda-feira passada, a Ministra Marta Temido, após reunião com a task force Covid19 do SNS, escutou o responsável pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, Luís Goes Pinheiro, afirmar estarem muito avançados os modelos de convocatórias dos cidadãos para a vacinação, incluindo por SMS.

A ministra Marta Temido parece nunca ter calcorreado caminhos que nos levam até Unidades de Saúde Familiar na Beira Alta ou ao interior de concelhos transmontanos, como Montalegre, Vimioso ou Mêda. Desconhecerá a Ministra da Saúde de que, em muitas daquelas terras, há pessoas a esperar um dia inteiro num centro de saúde, na esperança de serem atendidos? Isto por falta de médicos. Os que ainda ali permanecem, andam a saltar do hospital para o centro de saúde, da Misericórdia para um consultório privado em Vila Real, Bragança ou no Porto. Recorde-se um octogenário concreto, de carne e osso, o sr. António, morador no concelho de Montalegre, que para uma cirurgia à próstata teve de ser internado no Hospital de Braga. Na aldeia onde vive não há qualquer extensão pública de Saúde. Desloca-se manhã cedo, em transporte público privado à sede do concelho, onde espera mais de uma hora pela abertura da unidade de saúde familiar. Depois, exercitará a paciência para saber se naquele dia terá ou não consulta. Porquê? Não tem médico de família atribuído. E nesse dia, só terá ao final da tarde camionete para a sua aldeia.

Estamos a ver o sr. António e a mulher, mais o cunhado e uma prima solteira que vive perto deles, a andarilhar pelos consultórios privados de médicos em Montalegre – caso os haja –, solicitando por favor o documento tão desejado para poderem aceder ao direito de serem vacinados. E o médico, que nunca os viu, que deles não tem qualquer historial clínico, que vai ele declarar?

É necessário ainda contemplar que nos consultórios privados de médicos há que fazer um pagamento… Um pagamento seguramente substancial e será útil informar a ministra Marta Temido que o valor mínimo mensal das pensões de velhice, invalidez e sobrevivência, da Segurança Social, rondam os 275 euros. E não esquecer que o risco de pobreza, tendo e conta pensões e outras prestações sociais, em 2018, atingia já 88% da população maior de 65 anos, de acordo com a PORDATA.

Por tudo isto é que, de início, se recordou a morte do casal de idosos, em Almeida. É recorrente a cada inverno que passa… Não precisamos de lamentar mais, mas de relembrar que pouco significa o facto de mais de 700 mil famílias beneficiaram da taxa social no fornecimento de eletricidade. Por ser pouco social. Basta verificar. E ainda, por Portugal, nos dados do Eurostat para 2018, ser o país da União Europeia com o preço mais caro de eletricidade, considerados os preços ajustados ao poder de compra.

Ao casal de idosos, sem nome nas notícias, que em Valverde teve de recorrer à braseira para passar uma noite mais confortável, certamente se juntarão nos índices de óbitos outros nomes mais, quando daqui a dois anos consultarmos as estatísticas. A elas, seria bom não terem de se acrescentar alguns outros dos que tiveram de mendigar uma declaração médica, nos serviços médicos privados… não conseguindo colocarem-se na fila da vacina.

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