Opinião

Você vai ficar bem? – a pandemia e a (necessária) travessia no deserto das emoções

O mundo das emoções e o equilíbrio da mente nestes difíceis tempos de pandemia é o tema abordado neste artigo pela psicóloga clínica Sara Ferreira

Querido(a) leitor(a), já ouviu a expressão "dar o caminho das pedras”? Ou num outro sentido, fazer a “travessia no deserto”? Ela é uma referência a uma travessia de águas, em que, para chegar à outra margem, é preciso encontrar as pedras e caminhar sobre elas para não ser arrastado pela correnteza. Vivemos neste momento, ao nível do país do mundo, um momento mais ou menos assim; hoje há tanta informação, contrainformação, dúvidas, angústias e incertezas que não sabemos que caminho tomar sem sermos levados pela correnteza dos acontecimentos ou do fluxo de dados desencontrados.

Estar a passar por uma crise da humanidade, como há já muito não havia memória, é desafiador e tudo menos fácil. Não adianta negar isto, nem romantizá-lo. Para lá das 1001 coisas que seria suposto fazer ou dos vídeos divertidos na internet sobre o dia a dia em isolamento social, a verdade é que para muitas pessoas é difícil ficar fechado em casa, com ou sem crianças.

"Estou triste e vulnerável". Esta é a travessia no deserto para muitas pessoas em relação ao que sentem acontecer consigo e nas suas vidas. Mais do que a desesperança, o medo ou a raiva, podemos – nesta altura – apenas sentir desconforto e tristeza na sua forma mais pura. Estamos abatidos pelo número esmagador de doentes e falecidos por covid-19, podemos conhecer algumas pessoas afetadas ou sermos nós mesmos.

É claro que as medidas impostas, infelizmente, são inevitáveis, mas, não, o confinamento não é só uma questão de “aceitar” e aproveitar para passar mais tempo com a família. Para muitas pessoas isto tem um efeito perturbador e negativo e o impacto do medo, mesmo depois da situação aguda da pandemia passar, permanecerá dentro de muitas pessoas, sob a forma de somatizações, stress pós-traumático ou de qualquer outro tipo de perturbação da ansiedade.

Sim, temos de ser fortes enquanto seres humanos. Mas justamente por conta disso também somos vulneráveis. Não é preciso fingirmos sermos fortes o tempo todo, ou erguer uma fortaleza com pés de barro. Isso na maioria das vezes traduz-se apenas na negação ou na repressão de certas emoções (mais difíceis), neste momento tão válidas e úteis quanto as outras. O problema não é sentir. O problema é "bloquear-nos" a nós mesmos de o fazer na “esperança” que com isso o desconforto (natural) que uma situação destas pode provocar “magicamente” vá desaparecer. Não são as emoções que são “boas” ou “más”; o que pode ser “melhor” ou “pior” é a forma como lidamos com elas e o que fazemos com as nossas emoções.

Uma das tarefas que este período de recolhimento / confinamento / isolamento social praticamente nos “obriga” é testar a nossa capacidade de abrirmos espaço interno, ou seja, ganharmos mais foco (e consciência) em relação ao que nos habita, por dentro. A nossa “casa interna” (corpo, mente, pensamentos, emoções), os nossos centros de interioridade.

Por esta altura, as pessoas que estão mais “familiarizadas” consigo mesmas, seja por terem feito ou estarem a realizar processos de desenvolvimento pessoal, emocional, psicoterapêutico, terão maior à vontade e destreza nesta tarefa (para a generalidade das pessoas ainda muito desafiante, para dizer o mínimo).

Será que o espaço físico que habita está a ser um reflexo do seu espaço/mundo interno? Está a ser “bom” ou está a ser “mau”?...

Sugiro que procure sentar-se, de costas direitas e respirar profunda e tranquilamente. Aceite o convite para se ligar consigo mesmo(a) a um nível mais profundo. As práticas respiratórias e meditativas, tal como a ciência nos demonstra, podem funcionar como uma “musculação cerebral”, tornando mais forte e espesso o cíngulo anterior, a zona cerebral relacionada com os mecanismos de controlo da dor e do stress.

Previna-se, preserve-se e restaure-se. Vamos preparar esta regeneração interior, que neste momento começa e acaba – vagarosamente mas a olhos vistos – dentro de cada um de nós.

Na crise insólita da covid-19, é preciso enfrentar a caminhada pelo deserto. Até porque atravessá-lo é a única maneira de sair dele, ou, como diz a expressão anglo-saxónica (de que particularmente gosto muito), “the only way out is through”.

A mentalidade “excessivamente” positiva, sem passar pelo deserto, é falsa e temporária (exceto para aqueles que vivem numa constante “positividade” artificial ou têm problemas com empatia, em que a negação é apenas uma outra forma).

A boa notícia é que os desertos também serão abandonados. Podemos ficar presos no medo, na raiva ou na negação, mas a maioria das pessoas – quando (e se) ultrapassa estas fases – mais cedo ou mais tarde, consegue superar a tristeza.

No dia de hoje, a minha pergunta para si é esta: conhece a sua mente QUANDO ela não “funciona” bem?

Quando uma pessoa sabe como a sua mente funciona quando não está bem, ela pode prevenir-se, saber quando está a chegar ao seu limite, quando deve pedir ajuda. Você reconhece-se quando não está bem?

Que limites coloca quando percebe que o seu estado emocional está negativo? Que ações ou atitudes mais propícias à manutenção da sua saúde emocional implementa sempre que sente que o seu equilíbrio pessoal está em risco? Seja em relação à permanente exposição mediática, seja em relação ao convívio com as pessoas com quem habita, seja em relação às incertezas e angústias relativas ao emprego e à insegurança económica que esta crise também gera?

Talvez o que precisemos aceitar é que neste momento há objetivos, planos e projetos que talvez fiquem para trás (ou pelo menos, em suspenso). Que talvez as crianças vejam mais horas de televisão do que as que seriam recomendáveis, que talvez o nosso humor esteja a oscilar em catadupa, que talvez não tenhamos vontade de fazer todos os dias as refeições nutritivas e a atividade física que desejávamos fazer e que, mesmo passando muito tempo juntos, talvez não tenhamos assim tanta capacidade de descontrair, ou vontade de brincar e de jogar como pensamos que deveríamos ter.

“Tutto andra benne” ou “vamos todos ficar bem”, sim, certo, talvez, mas apenas se todos e cada um(a) fizermos por isso. Porque se há muitas coisas que simplesmente nos escapam do controlo, neste momento, outras mais há que – definitivamente – estão apenas nas suas mãos.

Tal como os médicos têm a missão de salvar vidas, os psicólogos também salvam vidas humanas, são o elo diferenciador entre o que ajuda a um estado de maior regulação interna ou o que poderia já estar à beira de um colapso emocional. O tipo de vida que acontece no interior da nossa mente é tão ou mais determinante para os nossos níveis de equilíbrio e saúde geral, especialmente para manter as emoções controladas sob o risco da pandemia agudizar condições sérias de saúde psicológica devido à tensão que se vive no ar. Eles precisam de estar nos hospitais a dar o seu melhor, e nós precisamos de saber usar as melhores estratégias de comunicação com as nossas redes e população, para transmitir/inspirar os comportamentos que reduzem o medo e dão mais controlo à vida de cada um(a) nesta fase temporária, incerta e difícil, até tudo voltar a estabilizar.

Num momento como este, é fundamental termos esperança e estarmos convictos de que tudo irá correr da melhor forma possível. Porém, acredito que para correr da melhor forma possível a primeira coisa que precisamos de fazer é mesmo aceitar que isto tudo, por enquanto, está longe de estar “normal”, ideal e perfeito, mas que continuando a fazer a parte que toca a cada um (e no entretanto, manter os cuidados de higienização física e – e! – psicológica) eventualmente “vamos todos ficar bem”.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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