Opinião

A Psicologia, a democracia e os direitos humanos no contexto do debate das Presidenciais 2021

Numa democracia do século XXI não podem existir e ser legitimadas como “um lado” qualquer tipo de ideias que defendam e advoguem a existência de pessoas melhores do que outras. O psicólogo Miguel Ricou, do Cintesis, da faculdade de Medicina da Universidade do Porto, mostra que a ciência psicológica pode dar um contributo para a explicação e a prevenção de fenómenos como o medo e a utilização que dele se faz

A expansão dos direitos humanos a mais países e a mais pessoas foi a maior conquista da Humanidade no século XX, sobretudo pelo que significa e pelo que representa. Os direitos humanos são hoje a referência basilar que nos deve orientar enquanto sociedade na prossecução da igualdade de oportunidades entre todas as pessoas do mundo, e da forma de se construir um mundo mais justo, equilibrado e coeso.

E, na verdade, por muito que exista um nível elevado de iniquidades, com o qual não nos devamos conformar, vivemos hoje num mundo mais justo e equilibrado do que alguma vez terá acontecido na história da humanidade. Os direitos humanos têm, além de um caminho percorrido, um impacto significativo no bem-estar das populações.

Contudo, garantir oportunidades para todos significa aceitar e legitimar as diferenças e significa, sobretudo, aceitar as diferentes perspetivas de cada um para se conseguir atingir esse objetivo comum. Mas não nos podemos distrair: a aceitação da diferença e da diversidade tem de estar condicionada ao respeito do princípio fundamental dos direitos humanos, ou seja, a promoção da igualdade de oportunidades.

Vem esta reflexão a propósito do conjunto de debates das presidenciais 2021, onde várias candidaturas apelidaram a posição manifestada pelo candidato André Ventura de “outra direita”, como se as suas posições e a sua postura representassem “um lado” num arco democrático.

Numa democracia do século XXI não podem existir e ser legitimadas como “um lado” qualquer tipo de ideias que defendam e advoguem a existência de pessoas melhores do que outras, de pessoas com Presidente e de outras sem Presidente, de pessoas boas por oposição a más pessoas, ou que as classes sociais ou comunidades a que as pessoas pertençam sejam definitórias do indivíduo e dos seus direitos e deveres.

Neste contexto, como explicar o aparente sucesso de um discurso contra aqueles que nos incomodam, contra as instituições, contra a confiança entre as pessoas e a favor do culto da personalidade forte, da pessoa providencial que tudo sabe e pode, da pessoa que nunca se engana, que conhece os segredos do mundo e que sabe quem é bom e quem é mau, quem merece ser apoiado e quem merece ser expulso ou confinado. No fundo, como explicar ser possível confiar e acreditar em alguém que se substitui a tudo e a todos, à ciência, aos profissionais das diferentes áreas, aos jornalistas, aos políticos que “não servem para nada”? Como explicar a confiança e a crença em quem não se rege pelos mais elementares direitos humanos e disso faz manifesto?

É na resposta a estas questões, fundamentais para compreender e prevenir estes fenómenos, que a ciência psicológica pode dar um contributo. Uma única razão não pode explicar circunstâncias complexas. Terão de ser várias com uma constante: o medo e a utilização que deste se faz. O medo que resulta da insegurança (económica, mas também laboral e social), afinal uma das maiores ameaças à nossa organização de sociedade e modelo de vida. O medo, diminuindo a racionalidade, conduz à procura de segurança, de conforto e de proximidade junto dos “iguais”. Faz-nos regredir, não raras vezes como que a renegar a nossa autonomia, como que regressando a um momento de vida (a infância) em que dependíamos de adultos idealizados, afirmativos, seguros, que decidem por nós.

Uma segunda razão passa pela descoberta do inimigo comum, daquele ou daquelas que são a causa dos problemas. Porque, sem racionalidade e coerência, não importa quem é, convém apenas que seja um inimigo assustador. Aquele que é a causa da falência da nossa segurança social, aquele que é a causa da criminalidade, aquele que é a causa do desemprego. Aquele exemplo que, por mais irrelevante, abusivamente generalizado, confirma e reforça a narrativa. Particularmente quando o exemplo seja personificável, para que seja real, e de complexo o problema passe a simples, pois bastará coragem e determinação para resolvê-lo.

Em terceiro lugar, as redes sociais e a internet como principais fontes de informação das pessoas. Todos sabemos que a internet é um local onde podemos encontrar tudo, como uma feira enorme, sem regras e sem garantias, onde se vende de tudo. Contudo, tipicamente, numa feira tendemos a discutir preços, a desconfiar da qualidade e a sermos críticos e rigorosos em relação ao que compramos. Na internet, não. Desde que encontremos algo que vem corroborar as nossas ideias e crenças, os nossos medos ou os nossos desejos, a disponibilidade para aceitar e partilhar é total. Neste capítulo, a desinformação viaja a uma velocidade muito superior à informação factual e as teorias da conspiração encontram o ecossistema ideal. Partem de premissas mais ou menos verdadeiras, tais como por exemplo: a imprensa tem preferências políticas, ou existem interesses económicos com as vacinas, acabando em teorias altamente fantasiosas mas que dão às pessoas o poder de saberem mais (a verdade) do que as outras. A ausência de mediadores (jornalistas) e o nosso natural desejo em ter razão fazem o resto. Procuramos (e os algoritmos da internet ajudam) mais e mais argumentos para podermos ter resposta para tudo. E vamos polarizando e sectorizando as nossas opiniões. Depois as nossas conversas. Finalmente as nossas relações.

Então estaremos muito disponíveis para qualquer discurso que, ainda que vá contra os nossos valores naturalmente baseados nos direitos humanos, nos mostre que existe alguém, com poder, que de algum modo legitima os nossos receios, as nossas soluções e os nossos anseios. Nenhum de nós está livre de se deixar influenciar, sobretudo em períodos de maior vulnerabilidade ou quando passamos fases emocionalmente complicadas. Fases que aceleram a transformação de ideias numa espécie de fé, de crenças que já não necessitam de ser validadas por sentidos ou pela razão. Apenas uma verdade, a sua verdade, distinta da mentira dos outros.

Os últimos anos, meses e dias demonstram a urgência de uma reação. Para tal precisamos de desconfiar, particularmente de tudo aquilo que apresenta uma solução simples para problemas difíceis. Enquanto seres humanos somos seres altamente complexos, vivemos em sociedades tão abrangentes nas suas interligações que assumem complicações e incertezas que por vezes nem conseguimos compreender. Por isso mesmo, se não for por mais nada, por favor desconfiem de qualquer resposta demasiado simples.

Quanto aos debates a que temos assistido, por favor não se legitimem ideias contrárias à nossa democracia porque contrárias aos direitos humanos. Tal seria como medir a pressão em graus Celsius ou a altura em quilogramas. Essas ideias são o que são, respostas simples para problemas complexos.

Os direitos humanos são o resultado de consensos difíceis. Estas ideias são resultado e o aproveitamento político da exploração dos nossos medos coletivos. Não se misturam... Não se medem com a mesma medida.

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